quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

A Renúncia de Bento XVI

PARA SERVIR, NÃO PARA SER SERVIDO
A Renúncia de Bento XVI
            Que José Ratzinger – Bento XVI – foi um teólogo de grande envergadura qualquer um, que se interessa pelo assunto, o sabe. Talvez muitos não soubessem da grande lição que ele preparou para dar no final de seu pontificado. Podem até saber, mas uma reflexão há de fazer bem e servir para aplicar à realidade na qual nos encontramos todos os dias. Ratzinger lecionou, escreveu e falou bastante. Fez isso como professor, como teólogo e como pastor. Sua preocupação era ir ao encalço da verdade. O seu trabalho buscava traduzir a Boa Nova de Jesus Cristo para a Igreja e para o mundo. Interpretar a mensagem evangélica para o homem de nossos dias. Diante de sua maneira de fazer teologia, cada um tem o direito de se posicionar a favor ou contra, contudo, ninguém pode, sem soberba, não lhe reconhecer dedicação e profundidade teológica.
            Ratzinger, no entanto, reiteradas vezes lembrou que “a melhor interpretação do Evangelho e do cristianismo é a vida dos santos”. Todo ensino teológico é importante e necessário, mas o exemplo testemunhal dos santos confirma e traduz para nós hoje o que Jesus ensinou e fez. A teologia deve-lhes respeito confirmação. Com isso torna claro que teologia e vida cristã não podem estar separadas do Evangelho. Este é fonte para as duas, a teologia se alimenta do Evangelho e o traduz para a vida cristã, está última, por sua vez, interpreta e confirma a veracidade de ambos.
            Conforme Alfred Läple – teólogo de renome na Alemanha e ex-aluno de Ratzinger -, quando este professor falava de sua nobre missão, explicava: “quando você dá aulas, o máximo é quando os alunos deixam de lado a caneta e ficam ouvindo o que você diz. Enquanto eles continuarem a tomar notas sobre o que você diz, isso significa que você não os tocou. Mas, quando deixarem de lado a caneta e olharem para você enquanto você fala, é possível que você tenha tocado o coração deles”. A partir dessas duas considerações, podemos dizer que ante a vida dos santos, que se tornam “aula de Evangelho e de teologia”, se formos bons alunos, teremos que deixar a caneta de lado para apenas olhar, contemplar e acolher; deixar de escrever para que o ensinamento da aula possa penetrar no coração e na vida de cada um de nós.
Professor, teólogo e santo
            Jesus de Nazaré, o Divino Mestre, ensinou que não veio para ser servido, mas veio para servir. Como mestre o ensinou e como santo o interpretou. De fato serviu até as últimas consequências: deu a sua vida como serviço à humanidade, para que todos tivessem vida. Diante dessa “aula” deixamos a caneta de lado, contemplamos e ficamos mudos, pois a Palavra se cala por amor. As palavras já não conseguem mais explicar o que é dirigido ao coração do aluno (discípulo) que está ao pé da cruz do Mestre.
            Ratzinger para servir e não ser servido renunciou inúmeras vezes – a vida toda foi de renúncia – mas interpretou magistralmente o ensinamento de seu Mestre ao deixar todos “sem caneta na mão”, muito surpresos, ao anunciar que iria renunciar ao ministério petrino por não ter mais condições de fazê-lo adequadamente. O que ele sempre ensinou, conforme aprendera de Cristo, agora ele interpreta definitivamente como santo. E o faz com tal competência que não podemos, como bons alunos, não deixar de lado a “caneta”. Somos tocados no profundo de nosso coração. Ele nos diz e dá testemunho de que não devemos sonhar com honras e glórias, mas toda a vida de seguidores de Jesus de Nazaré há de ser serviço contínuo. Nenhuma ambição tem lugar na vida do cristão.
A lição
            Que lição fica para nós do professor, do teólogo, do Papa Bento XVI e do “santo Ratzinger”? Seria muita ousadia querer resumir em poucas palavras a lição que esse homem deu para a Igreja e para o mundo. No entanto, como “aluno que deixou a caneta de lado e tentou abrir o coração para acolher um pouco da mensagem”, quero sonhar. Não seria possível, de agora em diante, contarmos com mais servos e com menos servidos? Mais homens e mulheres dispostos a buscar em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e sem medo de perder os privilégios que o mundo oferece e que o dinheiro compra, mas que corroem a vida cristã? Mais bispos que tenham coragem de se “casar” com a Igreja (sua diocese), colocando-se como pastores ao serviço justo de todos, sem favorecer alguns em detrimento de outros; dispostos a dialogar sem tomar decisões precipitadas, baseadas em interesses individuais? Que bispos inescrupulosos, que justificam seus atos de governo a partir de afirmações como: “é que este sempre me ajuda!”, ou “aquele outro contribuiu com mais”; se renovem interiormente e tomem consciência de que não são os donos da Igreja? Que padres tenham coragem para se desapegar de seus títulos, seus cargos, suas importâncias, suas influências e suas qualidades, para estarem a serviço, em nome de Cristo, a todo o povo, mas principalmente dos mais pobres e necessitados? Que os presbíteros não fiquem perdendo tempo em se autojustificar diante do superior e do povo, mas que, com sinceridade, trabalhem para o bem da Igreja e contribuam na implantação do Reino de Deus? Que diáconos e líderes das comunidades tenham o serviço comunitário em primeiro lugar? Que nenhum ministro da Eucaristia, que nenhum catequista ou membro das comissões, de movimentos e pastorais se sinta dono da comunidade, mas que todos tenham a coragem de dar o lugar para outro que possa desenvolver melhor a função? Enfim, que todos, ministros ordenados, ministros extraordinários, líderes comunitários e povo em geral, aprendam com o Divino Mestre, por meio da aula magna do mestre e Santo Padre Bento XVI, a servir e não querer ser servido, e, se for melhor, saber renunciar até ao próprio serviço dentro e a favor da Igreja?
Outros, quem sabe, contando com a nossa oração e nosso sacrifício, poderão ser mais produtivos. O que vale é servir.
Pe. Mário Fernando Glaab
www.marioglaab.blogspot.com.br

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Jesus, os pobres, e nós...

FELIZES OS POBRES!
Pe. Mário Fernando Glaab
            “Felizes vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus!” – é assim que Jesus, segundo Lucas (Lc 6,20), se dirige para os presos, cegos, oprimidos, famintos, desolados, aborrecidos, difamados, perseguidos, marginalizados, coxos, leprosos, surdos e até mortos; àqueles que para a ideologia hegemônica - a dos dominantes - são a escória, os dejetos e a imundície da sociedade. Estes são os que recebem a boa notícia e que são convidados a ser seus discípulos. Jesus quer com eles instaurar o Reino de Deus. E, por outro lado, conforme o mesmo evangelista, Jesus é duro contra os ricos e a riqueza, “mas, ai de vós, ricos, porque já tendes vossa consolação!” (Lc 6,24).
            Sempre houve entre os cristãos uma tentação espiritualizadora em relação a Jesus e à sua mensagem, levando tudo para um relacionamento individual com Deus – distante das questões concretas que produzem os pobres. Hoje, a mesma tentação é mais forte ainda. Para uma sociedade que coloca sua confiança na riqueza, no sucesso, na fama, os pobres não são felizes. Nem sequer servem para tornar felizes os ricos. Quando muito, são usados para produzir riquezas, riquezas que caiem sempre no tesouro dos mesmos ricos. Uma vez que não se prestam mais para render lucros, os pobres são descartados e excluídos. Eles incomodam muitos, comovem outros, mas a maioria se faz indiferente diante da dor, do clamor e da morte deles. Permanecem indiferentes quando os pobres não os incomodam. Quando estão no seu devido lugar: excluídos do convívio social e até do religioso. Os indiferentes não gostam nem dos que falam dos pobres! Mesmo entre “bons fiéis” de nossas comunidades existem aqueles que não querem nem ouvir falar da Igreja comprometida que faz “opção preferencial pelos pobres”. Acham que esta Igreja já é coisa do passado e que foi sob a influência de partidos políticos de esquerda que ela fez seu discurso em favor dos que só perturbam a ordem estabelecida. Descalabros de governantes que se dizem de esquerda são usados para justificar seus argumentos. Nesse triste contexto pululam, tanto na Igreja Católica quanto nas diversas denominações evangélicas, movimentos e tendências pentecostais que exaltam a teologia da prosperidade. Pseudoteologia que inverte as palavras de Jesus: “felizes vós, os ricos, porque vosso é reino dos homens!”. Os pobres, bem ao contrário do que Jesus de Nazaré disse e fez, são vistos para ela como desgraça, são os possuídos dos espíritos maus. Necessitam ser exorcizados. E optar pelos ricos – ser rico – é ser abençoado! Que evangelho é esse, e que reino é esse?
            Jesus, ao acentuar “vós, os pobres”, dá conotação bem concreta à situação. Elimina por completo ideais abstratos, mas se dirige àquelas pessoas que estão aí, diante dele, com suas carências e com seus anseios de justiça e de vida. “Vosso é o Reino de Deus”, pois não tendes riquezas para nelas confiar. Por trás dessas palavras e das ameaças que Jesus faz aos ricos dá para entender que a riqueza é, quase sempre, uma armadilha mortal para a pessoa humana, uma vez que, frequentemente a envolve num processo de desumanização. A riqueza promete estabilidade, reforça a autossuficiência e se torna causa de muitas injustiças. Os ricos, até onde podem, desfrutam dos pobres, mas não os amam.
            Para Jesus, segundo Lucas, os pobres são seus discípulos, pois são eles que escutam a Boa Notícia: “vosso é o Reino de Deus”. É com eles que o Mestre se identifica, com eles irá contar. São Pedro e São João, Apóstolos de Jesus, quando interpelados pelo coxo de nascença, declaram sua absoluta pobreza ao afirmar que não possuíam nem ouro nem prata, mas somente a Palavra do Senhor que revigora e reanima os cansados (cf. At 3,6). É a pobreza, a fome, a aflição, o ódio e o exílio que caracterizam a situação concreta e existencial dos discípulos de Jesus de Nazaré, e são estes os que Ele declara felizes. Jesus mostra-se muito duro com os ricos e a riqueza (Lc 6,24). Mas esta ameaça é para que os ricos tomem consciência do perigo das riquezas, para que se libertem da idolatria do ter e do poder – causa de tantas injustiças -, e comunguem com a vida e o ser dos pobres. Alguém dizia: “O mundo vai virar um paraíso no dia em que os ricos desejarem passar fome” (Padre Alfredinho).
            Hoje, apesar da crescente consciência ecumênica, há, no entanto, verdadeiro espírito de competição entre igrejas e igrejas. Vergonhosamente até na mesma Igreja Católica existem concorrências entre movimentos, pastorais e comunidades. Não é difícil encontrar os que se julgam melhores que os outros, os que se preocupam em aumentar o seu grupo; outros ainda querem, por todos os meios, estancar a saída dos fiéis para outras denominações, e para isso fazem planos, procuram estratégias para convencer as pessoas a ficar. As promessas de curas, de soluções miraculosas, de prosperidade, de bênçãos e de realizações fazem parte do dia-a-dia. Onde estão os verdadeiros profetas que como Jesus tem coragem de dizer para os desvalidos e injustiçados de nossas ruas e bairro, “felizes vós!”? Pena que cada vez mais líderes religiosos se preocupam com o respeito às regras da comunidade, com os ritos e com quem pode ou não pode participar da reunião ou receber os sacramentos; deixando no esquecimento total os empobrecidos e excluídos. Isso faz lembrar os falsos pastores que já no tempo do profeta Ezequiel “apascentavam a si mesmos e devoravam as ovelhas” (Ez 34,8-10).
            Se Jesus de Nazaré, segundo Lucas, se encontra com os pobres e com eles se compromete, está bem consciente de que sua notícia é boa para eles, mas é péssima para os ricos, para os opressores e violentadores dos pobres. Ele não se conforma com o que causa pobreza, com o que faz sofrer, com o que exclui e com o que mata. Ele não vai contra os ricos, mas contra o sistema ao qual os ricos prestam culto e com o qual se comprometem, o sistema da injustiça. Jesus tinha os pés no chão, mas o coração nos céus; por isso diz “vós, os pobres” e “vosso é o Reino de Deus”.
            A partir de Jesus e de seu movimento, todos os discípulos e todas as igrejas cristãs são desafiados a envolver-se, apaixonar-se, compadecer-se pelo povo sofrido e revelar um grande esforço de transformação. Todos, iluminados pelas palavras e gestos de Jesus, devem colaborar para desmistificar o senso comum que idolatra a riqueza e o poder – também o poder religioso. Os líderes religiosos e todas as pessoas de boa vontade hão de se esforçar para que não haja mais separação entre puro e impuro, entre santo e pecador, entre sagrado e profano, pois “ninguém deve chamar de impuro aquilo que Deus criou” (At 10,15). Ninguém é melhor que ninguém! Pois quem se julga bom é orgulhoso, e o orgulho é causa de todos os males.
            Que cada um de nós, inspirado pela relação de Jesus com os pobres, junto com ele e com os pobres, colabore na construção de uma Igreja e de uma sociedade onde todos podem experimentar a alegria da presença do Reino de Deus; e isso, concretamente aqui e agora.
(Baseado no artigo de Frei Gilvander Luís Moreira, Os pobres na obra de Lucas (Lc e At) E em nós?, publicado pelo IHU da Unisinos, 06/02/13).
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