sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Viver na história, não da história

CABEÇA ERGUIDA, PÉS NO CHÃO

            Ouve-se frequentemente esta recomendação: cabeça erguida, pés no chão. É para lembrar que, na realidade humana, as duas dimensões não podem faltar e nem ser substituídas, nem uma privilegiada em detrimento da outra. O ser humano é animal racional, não somente animal, não somente racional, é corpo e alma, matéria e espírito. Igualmente se pode afirmar que o ser humano vive da história, mas não pode deixar de fazer história.

E Deus viu que era bom!
            O primeiro livro da Bíblia nos diz que Deus contemplou a criação, obra de sua Palavra poderosa, e viu que era tudo muito bom! (cf. Gn 1). O Papa Francisco, em sua Encíclica Laudato Si, lembra algo muito interessante dos ensinamentos de São Francisco de Assis, ao citar que o Santo pedia aos seus seguidores, “que no convento, se deixasse sempre uma parte do horto por cultivar, para aí crescerem as ervas silvestres, a fim de que, quem as admirasse, pudesse elevar o seu pensamento a Deus, autor de tanta beleza” (LS 12). E o papa explica o ensinamento do grande Contemplador das Maravilhas de Deus na Natureza, lembrando que Deus se revela pela natureza, além do livro da bíblia, como em um outro livro muito maravilhoso, dando a conhecer Sua beleza e bondade. O mundo com tudo o que contém é um mistério que convida à contemplação gozosa; faz experimentar alegria e leva ao louvor. Mesmo que no mundo se encontram espinhos, ele é bem mais do que uma problema a resolver, pois nele o Deus invisível ser faz visível para quem o respeita e tem fé.
            Quando eu ainda era uma criança, lembro que conheci uma mulher, uma senhora do povo pobre, muito humilde e analfabeta, mãe de muitos filhos; sua fé era visível nos afazeres do dia-a-dia. Além de cuidar da família, enfrentando momentos dificílimos quando faltava tudo, até mesmo o alimento, a saúde, o trabalho; ela ainda arrumava tempo para ajudar aos outros. Ela era parteira; daquelas que nunca fizeram curso algum, mas que pela prática nas maiores necessidades dos pobres de Javé, aprendera a ajudar a dar à luz. Apoiar aquelas que colaboravam com o Deus da Vida era para ela sagrado! Andava por toda a região ajudando, rezando, incentivando e sofrendo junto – uma santa! -, não como a “sociedade civilizada” concebe os santos, mas conforme o Deus de Jesus de Nazaré declara seus santos, os bem-aventurados.
            Esta mulher, sem saber ler, sem saber de nada das preocupações sobre o meio-ambiente, quando fazia suas rocinhas onde cultivava o sagrado alimento para a família, tinha uma intuição divina que a levava a deixar um cantinho sem colher, para que os passarinhos também tivessem alimento. É possível acreditar?! Sim; é pura verdade!
            Ao compartilhar a sua preocupação com a natureza foi considerada, pelas demais senhoras, de ignorante, e até fizeram dela motivo de chacota. Ela, no entanto, não ligava. Não era a sua pessoa que importava, mas cuidar da família, dos necessitados e da criação de Deus. Por ela, também hoje, Deus via que tudo era muito bom.
Viver na história, não da história

            Facilmente nos apegamos às conquistas que durante a história a humanidade adquiriu. Gostamos de viver no passado. Somos conservadores doentios. Sonhamos em acumular para poder usufruir sempre mais. Queremos ter muitas posses, garantias onde nos podemos colocar nossa confiança. Na verdade, não deveria ser assim: Deus em seus dois livros: na bíblia e a natureza, nos ensina outra maneira para viver. São tantos os homens de fé, de esperança e, especialmente de caridade que testemunham este outro jeito de viver. São Francisco, o Papa Francisco, e de modo todo particular, esta mulher, típica do povo simples, pobre e lutador, convocam-nos a ter os pés no chão, viver da história, mas muito mais, na história.
            O Espírito de Deus, que pairava sobre as águas quando a terra ainda estava deserta e vazia (cf. Gn 1), continua a soprar em todos os cantos de nosso imenso planeta, principalmente onde encontra homens e mulheres que o sabem acolher, sabem intuir seu sopro de amor, de respeito e de proteção. A nossa cabeça deve estar erguida para que possamos ver, ouvir e sentir para onde o vento sopra, mas os pés devem estar bem fixos no chão da existência concreta. Toda a criação está repleta do Espírito de Deus.

Pe. Mário Fernando Glaab

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