PACTO
DAS CATACUMBAS (6)
O sexto ponto do Pacto das Catacumbas assim se expressa: “No nosso comportamento, nas nossas relações
sociais, evitaremos aquilo que pode parecer conferir privilégios, prioridades
ou mesmo uma preferência qualquer aos ricos e aos poderosos (ex.: banquetes
oferecidos ou aceitos, classes nos serviços religiosos). Cf. Lc 13,12-14; 1Cor
9,14-19.”
Os textos bíblicos citados pelos bispos dizem o seguinte:
“Vendo-a, Jesus a chamou e lhe disse: ‘Mulher, estás livre da tua doença’. Ele
impôs as mãos sobre ela, que imediatamente se endireitou e começou a louvar a
Deus. O chefe da sinagoga, porém, furioso porque Jesus tinha feito uma cura em
dia de sábado, se pôs a dizer à multidão: ‘Há seis dias para trabalhar. Vinde,
pois, nesses dias para serdes curados, mas não em dia de sábado”. E, “Eu,
porém, não tenho usado de nenhum destes direitos. E não vos escrevo estas
coisas para os reclamar. Antes morrer do que... – esse meu título de glória
ninguém me tirará! Pois, anunciar o evangelho não é para mim motivo de glória.
É antes uma necessidade que se me impõe. Ai de mim, se eu não anunciar o
evangelho! Se eu o fizesse por iniciativa minha, teria direito a uma
recompensa. Mas se o faço por imposição, trata-se de uma incumbência a mim
confiada. Então, qual é a minha recompensa? Ela está no fato de eu anunciar o
evangelho gratuitamente, sem fazer uso do direito que o evangelho me confere.
Assim, livre em relação a todos, eu me tornei escravo de todos, a fim de ganhar
o maior número possível”.
Na
passagem do evangelho de Lucas encontramos Jesus, num dia de sábado, “perdendo”
seu tempo com uma mulher doente. Não podemos esquecer que mulheres, e ainda
mais, mulheres doentes, não possuíam valor algum na sociedade de então, ainda
mais diante dos chefes das sinagogas. Perder tempo com uma pessoa dessas, na
sinagoga e em dia de sábado, era no mínimo, muito estranho e sem sentido. Por
isso a fúria do chefe da sinagoga. Jesus não deveria privilegiar os piedosos
que vieram à sinagoga para cultuar a Deus e observar as prescrições
relacionadas ao sábado?! O texto de São Paulo é ainda mais esclarecedor. Ele
mostra que o evangelizador não pode esperar nada a não ser testemunhar o seu
compromisso de fé, a partir de sua missão: ai de mim se não evangelizar!
Aquilo
que pode parecer...
Os bispos nesse item são verdadeiramente ousados. Ao se
comprometerem de, no comportamento e nas relações sociais evitar aquilo que
pode parecer conferir privilégios, prioridades ou preferências, eles estão
supondo que na verdade os comportamentos e as relações não fazem isto jamais;
podem, no entanto, parecer como tais. Mas nem isso – o parecer - deve dar
motivo de escândalo.
Não conferir privilégios aos ricos e aos poderosos é
próprio de quem age gratuitamente, isto é, sem interesses. Não espera
recompensa, não vende seu trabalho, sua dignidade. Fazer o bem sem olhar a quem.
Jesus de Nazaré tinha plena liberdade para fazer o bem a qualquer pessoa, não
levava em conta sua riqueza ou sua condição social, nem mesmo a sua situação
diante da lei e da religião. Não é, porém, o que se tem visto no comportamento
de muitos bispos, padres e líderes comunitários em nossas igrejas. Os ricos e
poderosos quase sempre conseguem algumas exceções: é que eles podem ajudar de
“outras maneiras”, diz-se. Mais grave se torna o relacionamento entre bispos e
padres, quando estes últimos têm mais riquezas e mais poderes. Salvo raras
exceções, os clérigos melhor aquinhoados quase sempre levam vantagens sobre os
demais. Afinal, a parte financeira é extremamente importante, justifica-se. Não
é nada incomum que bispos e padres aceitem convites para ricos banquetes, mas
tomar um café na casa do pobre é perder tempo. Afinal, é necessário cuidar para
não perder a dignidade em meio a essa
gentalha que não entende as coisas!
O
caminho da gratuidade
O caminho da gratuidade é quase sempre difícil. Para
seguir por esse caminho é necessário aprender coisas como estas: dar sem
esperar muito, perdoar quase sem exigir, ser paciente com as pessoas pouco
agradáveis, ajudar pensando só no bem do outro. É o que ensina o Divino Mestre
quando em Lucas ele aconselha: “quando deres um almoço ou um jantar, não convides
teus amigos, nem teus irmãos, nem teus parentes, nem os vizinho ricos, porque
eles retribuirão (...), convida os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos”
(Lc 14,12-13).
Esse caminho da gratuidade, logo após o Concílio Vaticano
II (após o pacto) teve grande aceitação, especialmente na América Latina onde a
teologia da libertação falava muito da “opção preferencial pelos pobres”.
Percebia-se que muitos cristãos, entre eles bispos, padres, religiosos e
líderes comunitários, queriam ouvir deveras o apelo do Evangelho e viviam
pensando nos mais deserdados do mundo. Com o passar dos anos, infelizmente,
muita coisa mudou. Novamente alguns pensam que a “opção pelos pobres” é uma
linguagem perigosa inventada pelos teólogos da libertação, sempre com
interesses políticos de esquerda, e condenada por Roma com toda a razão. Isto,
todavia, não é verdade. A opção preferencial pelos pobres é uma palavra de
ordem que saiu do íntimo de Jesus de Nazaré. Pode-se afirmar, sem medo de
errar, que quem escuta o coração de Deus começa a privilegiar em sua vida os
mais necessitados.
Retomar
o propósito
Cinquenta anos depois do Vaticano II está mais do que na
hora de retomar o propósito dos bispos no pacto das catacumbas. Nada melhor do
que usar o corajoso testemunho do Papa Francisco que não esconde o desejo de
uma Igreja pobre, uma Igreja que não privilegia os ricos e os poderosos, mas
que como Jesus, vai ao encalço dos mais desvalidos, dos mais abandonados da
sociedade, levando a eles a mensagem da paz. Que tal se retomássemos o
propósito de buscar uma sociedade na qual cada um pensasse nos mais fracos e
indefesos? Uma sociedade muito diferente da atual, na qual aprendêssemos a amar
não a quem melhor nos paga, mas a quem mais precisa de nós.
Talvez seja bom saber, como nos lembra Frei Betto, que
todos nós cristãos somos discípulos de um prisioneiro político. Jesus não
morreu de doença ou de acidente em Jerusalém. Foi preso, torturado e condenado
à morte na cruz por dois poderes políticos: o de Herodes e o de Pilatos. Quem
nos aprova e quem nos condena? Pensemos.
Pe. Mário
Fernando Glaab
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