OBRAS
MISERCORDIOSAS E SER MISERICORDIOSO
Durante
este ano do Jubileu Extraordinário da Misericórdia que, segundo o desejo do
Papa Francisco, quer levar todos à contemplação do rosto misericordioso de Deus
e à prática da misericórdia em toda a nossa existência, muito se falou sobre o
tema. Porém, quero aproveitar para mais algumas reflexões.
Ser
misericordioso é mais que fazer obras de misericórdia
Certa catequista, ao explicar para as crianças a
necessidade de praticar as obras de misericórdia, ficou confusa diante da
pergunta de uma menina. Entre as obras de misericórdia a criança se deparou com
aquela que pede a visita aos presos. “Isso eu não posso fazer, pois é perigoso;
e nem sei se me deixam entrar onde estão os detentos”, exclamou ela,
preocupada. “Será que eu não posso fazer o que o Papa pede de nós?” A
catequista não soube explicar, uma vez que estava diante de um dilema: Deus não
pode querer o impossível, mas as obras de misericórdia de fato continham também
esta de visitar os encarcerados.
As obras de misericórdia são objetivas, isto é, estão aí
para todos ver. Mas, nem todos podem fazer tudo. No caso da criança, é claro
que não compete a ela realizar algo para o que ainda não está apta e, mais
ainda, que seria perigoso e impossível. Neste caso, a virtude de prudência
equilibra as coisas. Mas não é isto que quero apresentar. Pretendo refletir
sobre o “ser misericordioso”.
Interessante observar que Jesus não prega as obras de
misericórdia, mas as supõe no julgamento. Pode-se entender que elas são
consequências de quem é misericordioso. Ele apenas diz que é preciso ser
misericordioso como o Pai é misericordioso (cf. Lc 6,36), insiste no amor ao
próximo e manda seguir o exemplo do samaritano misericordioso ( cf. Lc
10,25-37).
Levando-se em conta as palavras e as atitudes de Jesus, é
possível aprofundar a questão. Jesus mostra que a verdadeira misericórdia é
compartilhar a vida. Ou dito de outra maneira, é fazer-se próximo, estar junto
do outro. Este outro, no entanto, não é qualquer outro, mas é o outro que está
na miséria, aquele que sofre porque lhe é negado o direito de viver
humanamente. O miserável é aquele que não tem acesso à vida, conforme Deus
quer, isto é, não pode ser verdadeiramente humano. O que possui misericórdia
faz-se próximo do miserável e lhe compartilha o coração – aproxima-se com amor.
Como o samaritano, o misericordioso irá encontrar uma saída para o caído à
beira do caminho da humanidade. As várias obras de misericórdia são frutos do
misericordioso. Cada situação terá as “saídas” mais convenientes, conforme a
prudência o exige.
Agir
com misericórdia é reagir diante da dor e da injustiça
Quem se preocupa apenas com as obras de misericórdia pode
permanecer a vida toda querendo fazer o bem, mas falta-lhe uma verdadeira
conversão. Não é fundamentalmente misericordioso.
Ser misericordioso no profundo do ser significa que a
misericórdia, como qualidade da pessoa lhe serve de princípio. É parte de seu
fundamento. Deus é misericordioso por natureza; o ser humano, para ser
verdadeiro humano, necessita se construir sobre este fundamento que lhe vem de
Deus. Isso, em outras palavras, quer dizer que a misericórdia está lá onde está
a pessoa. Quando a pessoa misericordiosa entra em contato com o povo sofredor,
ela não fica em meros sentimentos. Ela reage. Deus escuta o clamor do povo
oprimido e vem-lhe ao encontro para libertá-lo, isto encontramos no Antigo e no
Novo Testamentos. O próprio Jesus veio para salvar o que estava perdido.
O misericordioso, antes de pensar em obras de
misericórdia, diante da dor do outro, reage para transformar a realidade.
Eliminar o mal e implantar o bem. Procura caminhos de solução. Nesse processo
não teme denunciar as causas da dor nem exigir justiça em nome e para os
sofredores. A dor alheia, que o toca interiormente, desencadeia a reação
misericordiosa que não se acalma enquanto não transforma a dor em bem-estar;
mesmo que isso envolva denúncia, luta e que cause sofrimento. É desta reação
que surgem as diversas obras, que por sua vez são tentativas para concretamente
solucionar a situação na qual se encontra o sofredor. O misericordioso vai
utilizando as obras conforme o momento, e, é claro, dentro dos critérios da
prudência. Não comprometer um bem maior com uma solução momentânea que pode
trazer mais complicações (como seria o caso da criança que fosse visitar os
presos).
Portanto, a misericórdia, como princípio do ser-cristão,
define toda a sua existência. A misericórdia define o seu ser ao ponto de fazer
parte integral de sua pessoa. É sempre princípio ativo de reação ante qualquer
realidade negativa que faz sofrer. Assim, ser cristão é agir com misericórdia;
caso contrário, todas as obras são apenas superficiais, não transformam nada.
A esta altura dá para entender porque a sociedade tolera,
e até elogia, as obras de misericórdia; mas não suporta a misericórdia. Já Dom
Hélder Câmara dizia que quando dava esmola para os pobres era considerado
santo, mas quando apontava os motivos da pobreza (reagia diante das causas da
pobreza) era considerado comunista. Então, ser misericordioso como o Pai do Céu
é uma meta que parece muito distante, mas queremos sempre de novo recomeçar o
caminho. Lembremos que a distância que nos separa do irmão sofredor, que
caminha ao nosso lado, pode ser grande, mas se estivermos atentos, poderemos
transpô-la. Certamente nos tornaremos apáticos e até contrários aos interesses
das classes dominantes, mas é por aí que vai a boa notícia do Evangelho.
Pe. Mário
Fernando Glaab