CINQUENTA ANOS DA ABERTURA DO VATICANO II
Recuperar a “Igreja no mundo”
Pe. Mário Fernando Glaab
Estamos cada vez mais próximos dos cinquenta anos da abertura do Concílio Vaticano II que aconteceu no dia 11 de outubro de 1962. Muito já se tratou do assunto, e muito ainda será tratado; dentro e fora da Igreja Católica. Isso não quer dizer que todos já tomaram consciência da importância do jubileu que se está para comemorar. Existem também comunidades, grupos, paróquias e até dioceses que não acordaram para o fato. Certamente passarão seu “sono dos inocentes” com poucas perturbações, uma vez que estão bem acomodados em seus quartos com todas as “janelas fechadas”. Espera-se, no entanto, que cada vez mais as pessoas sejam acordadas e que ao longo dos anos jubilares do Vaticano II se deixem tocar pela reflexão e, mais ainda, “abram todas as janelas” para que o Espírito Santo possa entrar, conforme a explicação de João XXIII, e, consequentemente recuperar para a Igreja a consciência de que há de ser a “Igreja no mundo”, para compartilhar com este “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem” (GS 1).
O vento incomodou
Não é preciso ser muito esperto para entender que em lugares fechados, quando de chofre se abrem as janelas, e o ar fresco começa a penetrar, aqueles que estavam aí acomodados por muito tempo se sentem perturbados. Correm o risco de se resfriarem e até mesmo de pegarem doenças graves. Mas, por outro lado, o vento que tanto incomoda os que aí fixaram seu lugar de “repouso” cria condições para que outros entrem na sala e levem vida nova. Os mofos são eliminados e plantas verdes, belas folhagens, podem rejuvenescer o ambiente. Gente nova, plantas novas, luzes intensas, no início chegam a perturbar, quem sabe, até a provocar confusão e alergia nos não abertos. A vida, no entanto, se desenvolve nesse vai e vem de ar novo e fresco. Não é necessário dizer que estamos usando a figura da sala fechada – agora aberta -; trabalho realizado pelo Concílio, conforme o Papa João XXIII o queria. O vento impetuoso que penetrou no interior da sala, incomodando os acomodados, dando vida aos que o acolheram, é, sem dúvida, o Espírito Santo que soprou forte durante e após o Concílio sobre a Igreja e o mundo.
Esse Vento incomodou muitos. Alguns não o suportaram. Mas, renovando radicalmente a Igreja pelo mundo afora, o Espírito provocou um enorme entusiasmo religioso, não somente entre os católicos, mas também nos cristãos não-católicos e em numerosas pessoas de boa vontade. O ecumenismo foi a “marca registrada” do Concílio vaticano II.
Na América Latina o sopro do vento impetuoso teve grande aceitação. Foi talvez o Continente onde mais se percebesse a acolhida do espírito conciliar junto às massas, ou como preferem, junto às bases. Todo o contexto político-econômico-social-religioso o favoreceu. Mas, foi assaz importante a condução firme e esclarecedora de bispos, pastores, teólogos, padres, religiosos e imensa multidão de leigos comprometidos com a causa do Reino de Deus em meio a um povo empobrecido. O espírito do Vaticano II encontrou terra acolhedora. Se não estava totalmente preparada, aos poucos foi-se fertilizando com muito trabalho e luta das comunidades. As comunidades de base, a teologia da libertação, o movimento de leitura popular da Bíblia, a inserção da Igreja em questões sociais e de direitos humanos, foram alguns frutos dessa “nova Igreja”, que assim pode contar com a valiosa compreensão e colaboração de Igrejas da Reforma que aderiram ao espírito ecumênico.
Como não podia deixar de ser, esse “Pentecostes da Igreja na América Latina”, não ficou sem duras oposições e críticas negativas aos milhares. Os conservadores e acomodados não deixaram por menos. Eles estavam tanto dentro como fora da Igreja Católica. Perseguiram e condenaram, não somente a visão da Igreja no mundo, mas também as pessoas que a representavam. Cunhou-se, nesse período, um novo conceito de mártir. O mártir continua sendo alguém que dá sua vida pela fé, mas pela fé que se traduz em compromisso por um mundo melhor para todos, especialmente para os injustamente empobrecidos. Nesse novo cenário muitas vezes os mártires são vítimas da ganância dos próprios cristãos. Isso é lamentável!
Esmorecimento
O entusiasmo dos anos 70 e 80 diminuiu. Conta-se que no auge da renovação da Igreja Católica um pastor protestante fez a seguinte reflexão para a sua Igreja: não seria a tal renovação da Igreja Católica uma chamada de atenção para nós, no sentido de nos alertar de que os valores que tanto prezamos, como a Bíblia, o vernáculo, a liturgia, a constituição de comunidades, a afirmação do sacerdócio comum dos crentes etc., necessitam de renovação também entre nós, ou nossa juntamente com os Católicos. A Igreja Católica, agora se renovando, estava mostrando que o rosto da Igreja Protestante estava cheio de rugas e havia envelhecido (Cf. P. Walter Altmann, palestra no Congresso da Soter/12).
Hoje, infelizmente, temos que admitir que também o rosto da Igreja Católica na América Latina está enrugado e envelheceu rapidamente. Cinquenta anos parece ser pouco; e forçosamente nos perguntamos: não seria envelhecimento precoce porque fechamos as janelas novamente? Será que já envelhecemos e estamos com medo do vento que não nos deixa “descansar”? Com o passar dos anos, em nossas Igrejas, muitas janelas foram fechadas. Muitos líderes foram calados, perseguidos, condenados e mortos; outros, por falta de apoio, cansaram e desanimaram. As Igrejas, para quem quiser ver, por ironia do destino, se cobrem cada vez mais com “panos”! Investem na visibilidade, no belo, no show, escondendo seu verdadeiro rosto já feio. Numerosas celebrações na mídia ou em templos enormes mostram o “frio” de que sofrem, pois os investimentos em “panos” são demais. Basta ver sacerdotes jovens que esnobam paramentos riquíssimos, imitando os paramentos imponentes de um ídolo que faz shows na televisão.
Reabrir as janelas
Consequência direta ou indireta, mas está confirmado que a Igreja e as Igrejas cristãs estão enfrentando uma enorme crise de credibilidade no mundo pós-moderno. A fragmentação, própria da cultura do mundo pós-moderno, desconfia de tudo. Não deixaria fora de sua desconfiança uma Igreja que se fecha sobre si mesma, ainda mais ao se cobrir com sinais do passado que já não falam mais nada para os homens de hoje. O homem pós-moderno quer desvendar o mistério que encobre as Igrejas, mas elas estão com medo do frio que sofrerão ao se desnudarem.
Não tem outra saída. A comemoração do jubileu de ouro do Concílio Vaticano II deve ser uma oportunidade única para que a Igreja escute novamente a voz profética do Papa João XXIII conclamando a todos para abrirem as janelas ao Espírito Santo. O ar fresco do Espírito há de convocar todas as pessoas de boa vontade para se atualizares no caminho ecumênico. Se os cristão não ouvirem a voz do Espírito que os convoca para juntos darem o motivo de suas convicções, não poderão responder satisfatoriamente ao homem pós-moderno. Trata-se da “terapia ecumênica”, como a chamam alguns teólogos. Nem a fragmentação religiosa, nem o fundamentalismo fanático, como também o entrincheiramento confessional de cada Igreja são caminhos viáveis; há apenas o caminho ecumênico. E quem o ensina a seguir é o Espírito que, generoso como é, bem poderá mostrá-lo novamente, caso abrirmos as janelas para que possa entrar e soprar fortemente.
Conclusão
O Concílio Vaticano II, apesar da resistência de grande parte dos altos dignitários da Cúria Romana, abriu as portas e janelas da Igreja para o Espírito entrar nela renová-la, para então ser uma Igreja no mundo. O espírito ecumênico que despertou entusiasmo enorme foi seu grande fruto. Ecumenicamente a Igreja de Cristo se colocou no mundo para com ele abrir-se ao Reino de Deus. Ao valorizar tudo o que é bom e denunciar tudo o que é mau, a Igreja se colocou ao serviço do homem em qualquer situação, mas de modo especial daquele que é o mais necessitado: o pobre, o injustiçado e oprimido. Foi lá que o Espírito a levou com todos os irmãos de boa vontade.
Com o passar dos anos, diante dos obstáculos e sempre novos desafios, o entusiasmo renovador se encolheu bastante, mas não desapareceu. Novas situações e novas compreensões. Alguns tentam se “esconder”, ou esconder o rosto envelhecido da Igreja com roupagens novas e imponentes que não convencem o homem pós-moderno. Outros se lançam corajosamente ao testemunho a partir de uma vida comprometida com os novos pobres de nossos dias. São os que atualizam o Concílio para os dias atuais.
Precisamos nos convencer de que também hoje é necessário abrir portas e janelas para o Espírito e para o mundo, sem medo do frio que vai entrar e nos atingir; ter certeza de que também o mundo pós-moderno está sedento de respostas consistentes, que somente o Espírito, por meio de mulheres e homens unidos ecumenicamente, pode dar. Se os valores do Reino, que tinham tanta visibilidade nos anos 70 e 80 e que a Igreja do pós-concílio conseguiu testemunhar com muita coerência, parecem sumidos da vida dos seres humanos de nossos dias, não significa que de fato não existem mais. Eles estão por aí; mas precisam de novas descobertas. O jubileu de ouro do Concílio Vaticano II tem a importante tarefa de “recuperar a Igreja no mundo” de hoje.