PACTO DAS CATACUMBAS (PONTO 3)
No terceiro item do Pacto das Catacumbas os bispos assim se expressam: “Não possuiremos nem imóveis, nem móveis, nem conta em banco, etc., em nosso nome; e, se for preciso possuir, poremos tudo no nome da diocese, ou das obras sociais ou caritativas. Cf, Mt 6,19-21; Lc 12,33s.”. Os textos citados dizem: “Não ajunteis tesouros aqui na terra, onde a traça e a ferrugem destroem e os ladrões assaltam e roubam. Ao contrário, ajuntai para vós tesouros no céu, onde a traça e a ferrugem não destroem, nem os ladrões assaltam e roubam. Pois onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu coração”, e “Vendei vossos bens e dai esmola. Fazei para vós bolsas que não se estraguem, um tesouro no céu que não se acabe; ali o ladrão não chega nem a traça corrói”.
Não possuiremos...
O firme propósito de não possuir é o mais genuíno desejo de liberdade. Quando Jesus afirma que a verdade liberta (cf. Jo 8,32) está ensinando que o seu discípulo é verdadeiro quando está totalmente livre para segui-lo, isto é, não tem amarras que o prendem, mas deixa tudo para trás, para estar com o Mestre. Para os bispos possuir imóveis, móveis ou conta bancária representava falta de liberdade, cadeias e obstáculos para serem verdadeiros seguidores do Mestre Jesus de Nazaré. Aquele, cujo coração está preso aos imóveis, móveis e contas bancárias, não pode assumir com pureza o Evangelho, menos ainda, anunciá-lo e compartilhá-lo com os irmãos. Estas coisas distanciam o bispo, o padre e, pior ainda, o religioso, da grande maioria do povo, que é pobre. A liberdade que os bispos almejam com o não possuir lhes dá proximidade ao projeto de Jesus de Nazaré, que foi enviado para dar a Boa Notícia aos pobres (cf. Lc 4,18); dá-lhes oportunidade de se compadecer e experimentar, com coração de pobre, a paz que vem da confiança no Deus dos pobres. A proposta deixa bem claro que, ou a Igreja é dos pobres, dos que sofrem, ou deixa de ser a Igreja de Jesus. Se não são eles que preocupam os bispos, com quem ou com que estão preocupados? Para quem sabe ler no mais profundo, talvez consiga ler que os bispos estejam dizendo que o maior pecado consiste precisamente em se fechar aos sofrimentos e aos gritos dos pobres, e pensar apenas em si e no próprio bem, nas posses, nas honras e no poder. O cardeal Martini, falecido há pouco, falando para os nossos dias, dizia que nestes tempos de globalização, o cristianismo deve globalizar a atenção ao sofrimento dos pobres da Terra. Portanto, muito acertada a proposta dos bispos, pois, como pastores na Igreja Cristã, são os primeiros que devem “globalizar” sua atenção aos pobres, sofrendo junto com eles para lhes diminuir os sofrimentos.
Em nosso nome
Todo ser humano necessita de bens que a bondade divina lhe proporciona. Aliás, a natureza criada por Deus é muito pródiga. Existem bens em abundância e, se forem usados responsavelmente e partilhados com justiça, com certeza ninguém vai perecer por falta deles. Contudo, Deus criou o mundo e o entregou ao ser humano, a cada ser humano. Deus tanto confiou no ser humano que lhe deixou a tarefa de fazer com que a criação produzisse frutos a partir de seu trabalho. A criação, apesar disso, continua a criação de Deus, jamais criação do homem.
Os bispos entenderam bem, e com bastante lucidez assumiram o compromisso de não possuir os bens em seu nome. Eles, como bispos (também os padres) já estão no nome de Alguém: Jesus Cristo. Como então possuir em seu nome? Jesus não tinha nem onde reclinar a cabeça! A consciência da missão de, em nome de Cristo, dizer a todos que os bens criados por Deus precisam ser compartilhados na justiça e na caridade exige desprendimento total. E, quando essa tarefa o exige, colocar os imóveis, móveis e a contas bancárias no nome da diocese ou de obras sociais é, justamente, testemunhar que tudo está aí para o bem de todos. Se o bispo é o pastor de uma diocese, os bem que administra é para o bem dos diocesanos. Não pode haver outra razão. Assim foi o Mestre; assim será o que faz, como discípulo, às vezes desse Mestre.
Dos dias do pacto até aos dias de hoje
A história não o nega: o pacto das catacumbas teve grande impacto, especialmente nos países da América Latina, também na África, Ásia e, até mesmo, na Europa e na América do Norte. Houve libertação para muitos pastores das igrejas dos pobres, isto é, muitos pastores (bispos, presbíteros, diáconos, religiosos e leigos engajados) renunciaram a ter em seu nome bens, e com coragem, compartilharam da vida simples e pobre da maioria do povo. Junto ao povo desvalido aprenderam a verdadeira caridade, aquela que somente Jesus, o Pobre de Nazaré, ensina. Na prática perceberam que esta maneira de viver não se aprende nos livros, mas somente junto aos que são felizes porque Deus escondeu essas coisas aos sábios e entendidos. A Igreja conheceu seu Senhor presente nas cruzes de sua gente e, se aproximou dEle como nunca até então. Por essa causa, assumida corajosamente, foi duramente criticada e perseguida, mas sua credibilidade diante do mundo tornou-se testemunho. Até hoje se colhem numerosos frutos do trabalho de muitos bispos, padres e milhares de leigos pobres e livres, que não se envergonharam de Jesus de Nazaré e de seu Evangelho: “Felizes vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus!” (Lc 6,20).
Nem tudo deu certo. A história mostra que desde o imediato pós-concílio forças contrárias lutaram para que o compromisso dos bispos do pacto ficasse somente no papel. Verdadeiras campanhas contra a Igreja dos Pobres se alastraram. Tentou-se por todos os meios denegrir o nome dos pobres e dos que estavam a seu favor. Manifestações dos pobres eram reprimidas e, com notícias truncadas e tendenciosas, tentaram-se influenciar a opinião pública para tachar todos os que estavam junto às vítimas como maus, violentos, vagabundos, sem ordem, etc. Bispos, padres e leigos comprometidos eram classificados como pertencentes a partidos de esquerda e até mesmo comunistas. Os teólogos da teologia de libertação eram os mais criticados. Alguns foram duramente perseguidos e excluídos.
O que, no entanto, mais assusta é que hoje, 50 anos após o Concílio Vaticano II, a Igreja e a sociedade estão sendo invadida pela mentalidade do clericalismo possuidor de bens, de honras e de poderes. Cresce o número dos pastores que se fecham em seu gabinete, e de lá, administram as dioceses, as paróquias ou as comunidades. Suas ordens são ordens. Tem atrás de si o respaldo do poder – infelizmente muitas vezes econômico! Sabe-se que certas atitudes não são nada conforme o pacto das catacumbas, e muito menos, conforme Jesus de Nazaré. Cometem-se injustiças entre os irmãos de um mesmo presbitério; dificulta-se a atuação de quem pretende estar do lado do mais necessitado, privilegia-se àquele que “promete mais” (economicamente!). Os cargos mais importantes são todos confiados somente a estes. Talvez esteja mais do que na hora de abrir os olhos, não só do corpo, mas também os do coração, para, neste momento histórico único interpretar os sinais dos tempos – o grande sinal do Papa Francisco -, para reassumir, como fizeram os bispos durante o Concílio, à renúncia aos bens que tanto mal fizeram e fazem à Igreja. Ao se repropor esses compromissos não se quer afirmar que os pobres são melhores do que os demais, somente tomar consciência de que, pelo fato de serem pobres, eles merecem um tratamento especial por parte de Deus e dos discípulos de Jesus Cristo. A única razão do privilégio dos pobres, conforme Jesus ensinou no evangelho de Lucas, consiste em que são pobres e oprimidos; e, Deus não pode “reinar” no mundo senão fazendo-lhes justiça. Essa justiça é atualizada pelos que seguem verdadeiramente o Mestre Jesus. E lembremos ainda: onde Deus “reina” não mais poderão reinar os poderosos sobre os fracos nem os fortes (de dinheiro) sobre os indefesos (os que não têm dinheiro).
Pe. Mário Fernando Glaab
WWW.marioglaab.blogspot.com.br
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