quarta-feira, 27 de junho de 2012

Pai de bondade

ARREPENDIMENTO E PERDÃO

            Ao nos aproximarmos de Deus-Pai, revelado por Jesus de Nazaré, somos levados a experimentar um Deus sempre novo e diferente; um Deus que escapa de todas as concepções pré-formuladas. Esse Pai de Jesus e Pai-nosso é novo e diferente porque não está lá onde o imaginamos: num céu distante, no poder e na glória. Está, no entanto, ao nosso lado, esperando sempre por cada um de nós, mesmo que nós estejamos longe dele. Ele nos abraça com o seu amor perdoador.
            A pregação de Jesus, assim como toda a pregação bíblica, convoca à conversão, isto é, ao arrependimento dos pecados para assumir vida nova em Deus, ou melhor, aceitar Deus em nossa vida. Isso, todavia, não quer dizer que Jesus relaciona o perdão do pai com o arrependimento do pecador. Conforme Jesus revela seu Pai ao ser humano, podemos dizer que ele é Pai misericordioso não porque nós o convencemos disso, uma vez que estamos arrependidos e clamamos por misericórdia. Mas a iniciativa amorosa é sempre dele. Somente quem experimenta, ao menos um pouco, desse amor do Pai de Jesus pode ver a caducidade das riquezas, do poder e do prazer – fontes do pecado -, e assim ser levado ao arrependimento. Quanto mais a mulher e o homem se arrependem de suas infidelidades ao projeto divino tanto mais são capazes de se abrir ao Pai, cheio de bondade. Como Jesus sempre foi o justo, aquele que não cometeu pecado, ele pode estar sempre aberto à plenitude do amor paterno. Nós nos abrimos limitadamente, mas com a graça e a força do Espírito Santo, arrependidos dos pecados, podemos avançar no processo de abertura e acolher sempre mais, até onde for possível para um ser humano finito.
            Pode-se dizer que não há troca entre arrependimento e perdão, não existe pequeno comércio entre o pecador e Deus. Deus é pleno de poder, mas esse poder é o poder do amor e, podemos entendê-lo somente à medida que, arrependidos, livres das amarras, aceitarmos seu perdão. Podemos até afirmar que Deus é limitado no seu infinito poder de amor, pois quando o ser humano Lhe responde com amor, imediatamente Ele estará “preso” no objeto de seu amor: o ser humano será dependente do Pai, mas este não pode não amá-lo, pois o ama sempre, mesmo que esteja longe.
Pe. Mário Fernando Glaab
www.marioglaab.blogspot.com

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Deixei de lecionar teologia

LECIONAR TEOLOGIA
Pe. Mário Fernando Glaab
            Entre uma e outra disciplina que se leciona há enormes diferenças. Não é possível lecionar matemática como se leciona geografia, nem português como música, isso é lógico. Há, no entanto, algumas ciências que merecem considerações únicas. É o caso da teologia. Por teologia se entende o estudo das questões referentes a Deus e de suas relações com os seres humanos. Até aí pode parecer que não tenha nada que a distancia dos demais estudos. Mas, vejamos:
            Teologia, em nosso contexto cristão, isto é, para pessoas que têm fé do jeito cristão de crer, é bem mais do que um estudo que acumula saberes ou treina para atividades práticas. É estudo, e tem a intenção de treinar os alunos para a vida cristã, sim; mas é também contemplação. Mais do que transmitir conhecimentos, quer levar os teólogos para a esfera do divino; ou então, quer-lhes falar ao coração. Se as outras disciplinas se dirigem à cabeça e aos braços das pessoas, esta, além dessas duas direções, pretende alcançar o coração do homem e da mulher, pretende atingir o mais íntimo do humano.
                        Lecionar teologia não consiste, então, somente em transmitir dados usando os métodos modernos que estão ao nosso dispor. O professor de teologia faz isso sim, mas se ficar somente nisso, não fez o que devia fazer. O grande teólogo e professor de teologia, J. Ratzinger (hoje Bento XVI), dizia sempre: “quando você dá aulas, o máximo é quando os alunos deixam de lado a caneta e ficam ouvindo o que você diz. Enquanto eles continuarem a tomar notas sobre o que você diz, isso significa que você não os tocou. Mas, quando deixarem de lado a caneta e olharem para você enquanto você fala, é possível que você tenha tocado o coração deles” (Afirmação citada por Alfred Läpple, aluno de Ratzinger e teólogo de renome na Alemanha). E, ainda segundo testemunha Läpple: “Ele queria falar ao coração dos alunos. Não estava interessado em simplesmente aumentar os conhecimentos deles. Dizia que as coisas importantes do cristianismo só são aprendidas quando aquecem o coração”.
            Pergunta-se, a partir dessa reflexão, como se faz teologia em nossos seminários? Nas exposições de nossos professores, em nossos institutos teológicos, os alunos chegam a deixar de lado a caneta? Se o fazem, é por terem sido atingidos no coração ou por terem sido vencidos pelo sono e pela preguiça? Quais de nossos estudantes saboreiam de fato o gosto variado das diversas disciplinas teológicas? Padre Libânio escrevia, alguns anos passados, que muitos estudantes “sofrem a teologia”, querendo com isso afirmar que não aproveitam as riquezas que ela lhes proporciona. A culpa, nesses casos, é somente do aluno, ou será que os senhores professores, assim como a organização dos institutos, também têm um pouco de participação no “sofrimento” deles?
            Talvez esse seja um dos motivos que me levaram ao afastameto dessa nobre missão: ensinar teologia. Confesso que tentei, apesar de minhas poucas capacidades, transmitir bem mais que simples conhecimentos na sala de aula, procurei atingir o coração dos estudantes. Sem dúvida, não faltaram experiências boas nas quais percebia a sinceridade dos alunos que entravam em contato com o Profundo. Outras vezes, a pouca colaboração e a desmotivação se tornavam obstáculos dificílimos de se transpor. Como não havia apoio da direção do Instituto, muito menos orientação precisa, achei melhor me retirar. Quem sabe, livres de meu jeito “sem método” ou com “metodologia insuficiente”, os alunos terão novas perspectivas e ânimo renovado. Outros professores lecionarão melhor!
            Muito obrigado.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Oração de Pobre

ORAÇÃO E BLASFÊMIA
A blasfêmia do pobre é súplica para Deus

Pe. Mário Fernando Glaab
Neste mundo encontramos as mais diversas realidades, situações opostas e contrárias entre si. Realidades que se confundem e se misturam. Já o autor do Eclesiastes dizia que há tempo para tudo debaixo do sol e que isso não é novidade, mas que deve levar a reflexão mais séria (cf. Ecl 2). Há pessoas, coisas e situações que classificamos como boas, mas há também pessoas, coisas e situações que temos como más; entre elas existem as que são mais ou menos, nem tão boas, nem tão más – intermediárias. Depende muito de quem as classifica, pois para um podem ser muito boas, para outro, nem tanto, e para outro ainda, são ruins. É neste mundo que vivemos e onde somos chamados a distinguir o bem do mal, para escolher e praticar somente o bem, evitando a todo o custo o mal.
É justamente neste mundo tão complexo que as pessoas, cada uma conforme sua capacidade, sua vontade e tantos outros fatores que as influenciam, procuram ser alguém que responde aos apelos da vida. Como todo o ser humano sabe muito bem que não está em condições de se defrontar sozinho com esse emaranhado de questões, as pessoas buscam ajudas ou soluções fora de si mesmas. Essas buscas levam por caminhos diversos: nos outros, nas coisas (ciências e técnicas), e, talvez também em Deus. Eis a questão. Quando se fala da ajuda ou da solução que vem de Deus, ou que não vem; quer-se falar dos caminhos para a Ele chegar. Geralmente se reduz todo esforço humano de busca relacional com Deus a uma palavrinha: oração. Pensa-se que a oração possua os meios necessários para tal. Há, todavia, outra forma de se relacionar com o Ser Superior, considerado pela grande maioria como negativa: a revolta ou a blasfêmia.

A oração e a blasfêmia
Para a palavra “oração” encontramos no dicionário: súplica religiosa; para a palavra “blasfêmia”, encontramos: palavras que ultrajam a divindade, a religião, ou pessoa ou coisa respeitável. Oração, a partir desta visão, é um pedido que se dirige a Deus, e isso religiosamente; penso que quer dizer com fé, esperança e amor. Súplica religiosa implica certa iniciação em determinada religião ou prática religiosa. É como colocar em prática algo que já se aprendeu e que agora irá funcionar. Blasfêmia, pelo contrário, é revolta diante de Deus, da religião, de pessoas ou de coisas respeitáveis. Quem é o revoltado? Por que está revoltado, e como ultraja esses “respeitáveis”? É difícil responder. A blasfêmia seria uma vingança que compensa o revoltoso? A grande abrangência que o conceito revolta contém, faz que se veja a revolta de inúmeros ângulos. A blasfêmia pode ser uma tentativa desesperada de vingança, por alguém que se percebe incapaz diante do “respeitável”; pode, no entanto, também ser o grito desesperado de alguém que não sabe mais o que fazer, não sabe mais onde se apoiar, porque tudo lhe foi arrancado. Até mesmo a confiança em algo “respeitável” lhe foi suprimido. O grito do ser humano que não se percebe mais como humano porque outros lhe tomaram essa certeza. A blasfêmia desse não-humano não tem nada em comum com a blasfêmia do orgulhoso que, no entanto se percebe incapaz. Será que existe o humano-não-humano? Caso exista, como Deus, a religião e as pessoas respeitáveis reagem às suas blasfêmias? Também aqui não é fácil responder.

Respostas das coisas, das pessoas e da religião.
Como vimos acima, a oração, em princípio, é dirigida a Deus; é Ele quem deve intervir quando o ser humano não sabe mais agir sozinho. Porém, a súplica não se restringe somente a Deus: pode-se pedir também aos outros e à religião, às entidades, aos governos etc. Isso traduz a colaboração que se solicita aos demais a fim de resolver questões prementes da vida cotidiana. Na melhor das hipóteses, os pedidos de ajuda são atendidos e as religiões e outras pessoas se colocam à disposição para juntos solucionar os problemas. Quanto às diversas entidades e governos, podem até atender, contudo, geralmente existem outros interesses neles que, igualmente, estão inseridos reiteradas vezes nas respostas das religiões e dos próximos. Por coisas é possível entender investimentos que se fazem, esperando retorno. Também essa é uma forma de “oração”. Na maioria das vezes, nesses casos, a resposta é “não”. Então não resta outra saída: insistir ou desistir.
A blasfêmia recebe quase sempre a mesma resposta da parte das coisas, das pessoas e da religião: desprezo vingativo. A religião e as pessoas podem não ligar às blasfêmias, mas a natureza liga sempre – não perdoa. O mais comum, todavia, é que nem a religião, e nem as pessoas perdoem; quase sempre reagem negativamente. Quando não revidam com castigos e perseguições, já é muito bom. Essa, no entanto, não é a regra. Normalmente castigam e reduzem o desesperado que blasfemou a zero, e justificam isso com suas preocupações de pureza e santidade que, como dizem, foi atingida e maculada pela blasfêmia.

Resposta de Deus
            Parece lógico, conforme estamos acostumados, que Deus atenda aos que oram humildemente e que se recuse a ouvir os rogos e as blasfêmias dos revoltados. Sem dúvida, é essa a verdade e é conforme o ensino das Escrituras e das religiões. Vem-nos imediatamente à memória o cântico de Maria onde ela exclama: “dispersou os orgulhosos (...), os humildes exaltou”, ou a passagem da Carta de São Pedro: “Deus resiste aos soberbos, mas dá sua graça aos humildes” (1Pd 5,5). Deus, sendo Pai, Irmão e Amigo do ser humano, e de todo ser humano, não poderia agir diferentemente. É o que pensamos.
            Porém, diante de Deus aquilo que, para nós é revolta e blasfêmia, pode ser oração e clamor por justiça! Tudo depende de quem procede a revolta ou a blasfêmia. Sabemo-lo bem, todavia poucas vezes nos toca o grito de Jesus na cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mt 27,46; Mc 15,34). Não seria também esta uma blasfêmia, uma vez que Jesus duvidou da presença de Deus naquele momento dramático?! Jesus retomando o Salmo 22 e gritando desesperadamente ao seu Pai estava blasfemando? Qual foi a reação do Pai? Ele se vingou de Jesus e o deixou entregue às mãos dos malfeitores? Quando Jesus, conforme Lc 23,46, diz “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito”, o Pai o rejeitou? Isso merece profunda reflexão de nossa parte. Não podemos ser levianos e julgar as coisas com nossos critérios adquiridos de qualquer jeito. Existem situações nas quais as blasfêmias são súplicas e orações diante de Deus que conhece o profundo do coração humano. O simples fato de alguém gritar a Deus em seu desespero já pode ser expressão de confiança na espera de ser atendido. O Pai não haveria de ouvir os gritos desesperados de seus filhos? Leonardo Boff não ousa afirmar que “quem grita a Deus deposita nele toda a confiança e espera ser atendido” (A Ave-Maria – O Feminino e o Espírito Santo, p. 107). E, compadecendo-se dos pais pobres que não têm como atender os filhos que gritam por alimento que não vem, Leonardo Boff não teme afirmar que “as blasfêmias dos pobres são súplicas para Deus, quando proferidas diante da fome das crianças!” (O Pai-Nosso, p. 89). Essas palavras do teólogo, quando bem interpretadas, são atualizações das palavras de Jesus na cruz. O Pai de Jesus não pode não ouvir as blasfêmias de um pai ou de uma mãe que grita ao ver seu filho passando fome e não poder atender aos choros dele. Como o Pai do céu atendeu a seu Filho Jesus e o ressuscitou, assim também ouve e atende a todo o pobre que lhe suplica, mesmo que a súplica do pobre seja em forma de grito ou de blasfêmia. O grito e a blasfêmia do pobre são ecos da maldade dos ricos; assim como o grito e a blasfêmia de Jesus na cruz foram ecos da maldade dos ricos que o crucificaram. Na verdade, a blasfêmia não é do pobre que a pronuncia, mas é daquele que não reparte os bens, do ganancioso, daquele que é a causa da fome, daquele que mata. Esse, sim, blasfema contra Deus, contra a religião, contra o próximo e contra a natureza.
            Que ninguém cause fome, pobreza ou qualquer injustiça ao seu irmão; ele poderá clamar ao Senhor, o Senhor o atenderá, e o ímpio passará por blasfemo diante de Deus, da religião, do próximo e da natureza sem ter o consolo de Deus que o escuta e o atende.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Historinha em Hunsrick

Schoat dass du es net groat so mache kannscht!
Mário F. Glaab
Frie woa dat doch alles imme so schen uf dea deitsch Kolonie. Die Leit hann sich doch all gut verstan, un hon sich imme geholf, wo was se helfe woa. Hon sich oach imme Suntachs in de Kerich un wo en Vergnicheplatz woa getroff. Dan honses andrich gebet un aach gebrost. Die Juchend hot Bolageschpield oder Karere gesprung; die eltere Leit hon Korte oder sunscht was fa Zeitvotreib geschpield. Un die Weiwa, oje, die hann jo doch die meascht Zeit blos Schimaron ingeschenkt un iwa die Annere gesproch. Dat woa awa net so schlim. Hatte sich all gern.
In dea Kolonie honn ja imme katholische un evangelische Leit beisamme gewoht; die honn sich all in Religionssache orich respecktiert. Vielmals sin’se, eene beim annere, in die Kerich gan. Haupsechlich wen een Beedichung woa: wend dea Verstorbene een Katholick woa dan sin die Evangelische in die Katholischkerich kum; wen es een Evangelische woa dan sin die Katholicke in die Evangelischekerich kum. Awe wie das doch imme is, hie un do hon’se sich bisje gepetz. Wen de eene de annere bisje spielhaft nemme kunt, dan hare es aach aproweitiert.
Een Toach isses grat mo so passiert dass de Pastoa un de Pooda sich him Zuch getroff hann. Gleich honnse bei nanna gehuckt un vazehlt. Die Rees wa ja lang un dea Zuch iss in der Zeite net schnell gefoa. Gebabeld und gebabeld; wie es dan mittach woa is do iss es so schrecklich hees gebb. Die zwei hon oangefang se schwitze dat dea Schweis geloof is; dat woa traurich! Die Sunn hot imme meh zum Fensta rin gebrend. Uff eemol geht de Pastoa groat mo bisje fot, un dan kim’da mit dem Jacke in de Hen, soat zum Pooda: “Schoat das du es net groat so mache kannst!” – die katholischepoodre muste jo doch imme, in der Zeite, mit dem dicke Mantel gehn. Leit, woa das mit griet hon, hon sich velacht. Dea Pooda must halt ruhich bleiwe. Net lang hot es awe gedauert, do iss dea Pooda mo ins panhere gan. Uff eemol komt ea zerick un hot jo doch die Hoose in dea Henn; soat spetich zum Pastoa: “schoat das du es net grat so mache kannst!” Do hon die Leit sich nochmol richtich velacht. Zum End hon die zwei Religiesischemenna halt oach mitgelacht. Jeder hat sei Witzje gemach un aach sei Trock griet.
Dat ware die gute un schene Zeite wo die Familie so schen gelebt hon; die Evangelische un die Katholische noch fromm wahre un alles gute Christe ware. Es wer doch so gut wenn heit die Juchend die Werte vun de eltere Leit nochmol finne dere, un net blos in der Stadt un in de Internet ihre Zeit vertreibe dere. Die Religione, Katholisch un Evangelisch, hon noch viel fa de Mensche se lerne.

sábado, 2 de junho de 2012

Os pobres também sonham

SONHAR É PRECISO
Pe. Mário Fernando Glaab
            Ninguém é dispensado de sonhar. Aliás, todos querem e necessitam de noites tranquilas para dormir e, quem sabe, também sonhar. Os sonhos, caracterizados pela esperança, não podem morrer, pois ainda não são. Só morre o que é. Ou melhor, como afirma Leonardo Boff, “é da natureza do sonho sempre ressuscitar”, já que vai além do momento presente. A vida, no entanto, traz situações nas quais parece que todos os sonhos desaparecem. Surgem momentos em que a noite fica escura, mas o sono não vem. As preocupações, as dificuldades e angústias são tantas que impedem sonhar; levam, talvez, a pesadelos e sustos terríveis que se procura afastar de todo jeito.
            Geralmente situações angustiosas que atingem grande parte das pessoas de nossa sociedade consumista e imediatista são fruto da ganância e da intolerância com o outro. O princípio do quem pode mais chora menos, ou mais atualizado, quem pode mais chora mais ainda traz consigo consequências nefastas. Quando as pessoas se dão conta que não podem abarcar o mundo todo sem passar por cima dos outros, pisando-os e esmagando-os, não têm o menor escrúpulo em fazê-lo. Se preciso for, o outro que se dane! Dizem que essa é a lei da sobrevivência nesse salve-se quem puder. Valores éticos e cristãos não valem para essas situações concretas. A ganância tem seus próprios valores.
            O mais difícil para tal mentalidade é colocar-se do outro lado: do lado da vítima. A vítima não interessa. Ela está aí para isso mesmo, e deve continuar sempre como vítima. É muito bom para a sociedade que as vítimas sejam privadas de todos os sonhos; que fiquem com a sua dura realidade; que não tenham tempo para dormir e sonhar. As atividades e preocupações das vítimas devem ser tantas que as prendam ao presente e, que somente esperem seu próprio fim, passando e morrendo com elas. Os sonhos são perigosos demais, pois transportam os sonhadores para o futuro esperançoso. Existem drogas que mantêm as pessoas acordadas para não sonharem, e outras que as fazem dormir tão profundamente que igualmente as impedem de sonhar. É, no entanto, possível arrancar por completo do outro seu direito de sonhar?
            Parece, à primeira vista, que sim. Todavia, quando se aprofunda a questão, vê-se claro que apesar de todos os obstáculos, ainda que tudo pareça perdido, sonhar continua possível. Nós cristãos, olhando para Jesus de Nazaré, aquele que foi o grande sonhador, aquele que veio para inaugurar um tempo novo no qual todos tivessem acesso aos bens que Deus colocou à disposição de seus filhos e filhas, somos levados a encontrar outra saída. Humanamente falando, os sonhos de Jesus foram diminuindo e cada vez mais constatava que o Reino de Deus - seu Pai - não encontrava eco nos corações das pessoas, mas era rejeitado abertamente. Até mesmo seus amigos íntimos não estavam em condições de compreendê-lo e assumir a sua causa. No fim de sua longa e insistente caminhada, quando já pendia da cruz, Jesus se dá conta de que Deus não vai interferir nem salvar seu sonho. Os sonhos acabaram! De fato, Jesus pregado na cruz não sonha mais da forma que sonhava até então. Passa por enorme frustração e consequente transformação. Agora o seu sonho é somente o sonho de seu Pai, que parece tão longe, mas que ele, por ser o Filho, não deixa se afastar definitivamente. O sonho de Jesus, purificado de tudo, é agora somente o sonho do Pai: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23,46); com este sonho o Pai o deixa dormir. Esse é o sono que dá realidade para o verdadeiro sonho de Jesus de Nazaré: o Reino de Deus anunciado e instaurado em todo o mundo pela doação total. A partir desse momento o Reino está presente e atuante com todos os que o seguem no exemplo de doação. Quem como Jesus de Nazaré se despoja de seus sonhos particulares para sonhar com o projeto do Pai que é vida e salvação para todos, pode voltar a sonhar. Sonhar verdadeiramente. Esse sonho, do qual participam todos os pobres e humildes de coração, é a Esperança colocada nos corações dos discípulos de Jesus. Deixemos que morra em nós a segurança das riquezas, as glórias das honras e as importâncias de nossos títulos. Lembremos, como diz sabiamente L. Boff, que “só morre o que é; o que ainda não é não pode morrer. A esperança é aquilo que ainda não é, mas se faz presente pelo desejo e é antecipado pelos anelos do coração”, isto é, naquele que pela fé procura seguir a Jesus de Nazaré com confiança e compromisso.
            Sonhar é preciso. Essa é a mensagem que a fé cristã oferece ao homem de hoje, como de todos os tempos. Não importa que as situações possam ser as mais adversas. Mesmo que os poderosos não queiram deixar tempo para os fracos sonhar, ainda assim, é possível. Caso não se possa sonhar com sono tranquilo, que se sonhe durante o trabalho, nos momentos de dor, de angústia e de morte. Morrer sonhando! Foi assim que Jesus morreu. A esperança que nos move é mais forte do que todos os que privam e que matam, do que todos os que querem tirar o direito de sonhar. Mesmo que nos privem de tudo que construímos até agora, arranquem todos os nossos apoios, a esperança não nos pode ser tirada, pois, Aquele que morreu desesperado – humanamente falando –, ressuscitou! Todo aquele que morrer “desesperado” como ele morreu, com ele ressuscitará. Sonhemos muito; sonhemos os sonhos do Reino de justiça, de igualdade e de dignidade. Sonhemos o sonho do Pai, revelado por Jesus de Nazaré e confirmado pelo Espírito de Amor derramado em nossos corações.
(Obs.: As citações de L. Boff são dos livros Cristianismo: o mínimo do mínimo e O Pai-nosso, ambos da Ed. Vozes).