quarta-feira, 13 de junho de 2012

Oração de Pobre

ORAÇÃO E BLASFÊMIA
A blasfêmia do pobre é súplica para Deus

Pe. Mário Fernando Glaab
Neste mundo encontramos as mais diversas realidades, situações opostas e contrárias entre si. Realidades que se confundem e se misturam. Já o autor do Eclesiastes dizia que há tempo para tudo debaixo do sol e que isso não é novidade, mas que deve levar a reflexão mais séria (cf. Ecl 2). Há pessoas, coisas e situações que classificamos como boas, mas há também pessoas, coisas e situações que temos como más; entre elas existem as que são mais ou menos, nem tão boas, nem tão más – intermediárias. Depende muito de quem as classifica, pois para um podem ser muito boas, para outro, nem tanto, e para outro ainda, são ruins. É neste mundo que vivemos e onde somos chamados a distinguir o bem do mal, para escolher e praticar somente o bem, evitando a todo o custo o mal.
É justamente neste mundo tão complexo que as pessoas, cada uma conforme sua capacidade, sua vontade e tantos outros fatores que as influenciam, procuram ser alguém que responde aos apelos da vida. Como todo o ser humano sabe muito bem que não está em condições de se defrontar sozinho com esse emaranhado de questões, as pessoas buscam ajudas ou soluções fora de si mesmas. Essas buscas levam por caminhos diversos: nos outros, nas coisas (ciências e técnicas), e, talvez também em Deus. Eis a questão. Quando se fala da ajuda ou da solução que vem de Deus, ou que não vem; quer-se falar dos caminhos para a Ele chegar. Geralmente se reduz todo esforço humano de busca relacional com Deus a uma palavrinha: oração. Pensa-se que a oração possua os meios necessários para tal. Há, todavia, outra forma de se relacionar com o Ser Superior, considerado pela grande maioria como negativa: a revolta ou a blasfêmia.

A oração e a blasfêmia
Para a palavra “oração” encontramos no dicionário: súplica religiosa; para a palavra “blasfêmia”, encontramos: palavras que ultrajam a divindade, a religião, ou pessoa ou coisa respeitável. Oração, a partir desta visão, é um pedido que se dirige a Deus, e isso religiosamente; penso que quer dizer com fé, esperança e amor. Súplica religiosa implica certa iniciação em determinada religião ou prática religiosa. É como colocar em prática algo que já se aprendeu e que agora irá funcionar. Blasfêmia, pelo contrário, é revolta diante de Deus, da religião, de pessoas ou de coisas respeitáveis. Quem é o revoltado? Por que está revoltado, e como ultraja esses “respeitáveis”? É difícil responder. A blasfêmia seria uma vingança que compensa o revoltoso? A grande abrangência que o conceito revolta contém, faz que se veja a revolta de inúmeros ângulos. A blasfêmia pode ser uma tentativa desesperada de vingança, por alguém que se percebe incapaz diante do “respeitável”; pode, no entanto, também ser o grito desesperado de alguém que não sabe mais o que fazer, não sabe mais onde se apoiar, porque tudo lhe foi arrancado. Até mesmo a confiança em algo “respeitável” lhe foi suprimido. O grito do ser humano que não se percebe mais como humano porque outros lhe tomaram essa certeza. A blasfêmia desse não-humano não tem nada em comum com a blasfêmia do orgulhoso que, no entanto se percebe incapaz. Será que existe o humano-não-humano? Caso exista, como Deus, a religião e as pessoas respeitáveis reagem às suas blasfêmias? Também aqui não é fácil responder.

Respostas das coisas, das pessoas e da religião.
Como vimos acima, a oração, em princípio, é dirigida a Deus; é Ele quem deve intervir quando o ser humano não sabe mais agir sozinho. Porém, a súplica não se restringe somente a Deus: pode-se pedir também aos outros e à religião, às entidades, aos governos etc. Isso traduz a colaboração que se solicita aos demais a fim de resolver questões prementes da vida cotidiana. Na melhor das hipóteses, os pedidos de ajuda são atendidos e as religiões e outras pessoas se colocam à disposição para juntos solucionar os problemas. Quanto às diversas entidades e governos, podem até atender, contudo, geralmente existem outros interesses neles que, igualmente, estão inseridos reiteradas vezes nas respostas das religiões e dos próximos. Por coisas é possível entender investimentos que se fazem, esperando retorno. Também essa é uma forma de “oração”. Na maioria das vezes, nesses casos, a resposta é “não”. Então não resta outra saída: insistir ou desistir.
A blasfêmia recebe quase sempre a mesma resposta da parte das coisas, das pessoas e da religião: desprezo vingativo. A religião e as pessoas podem não ligar às blasfêmias, mas a natureza liga sempre – não perdoa. O mais comum, todavia, é que nem a religião, e nem as pessoas perdoem; quase sempre reagem negativamente. Quando não revidam com castigos e perseguições, já é muito bom. Essa, no entanto, não é a regra. Normalmente castigam e reduzem o desesperado que blasfemou a zero, e justificam isso com suas preocupações de pureza e santidade que, como dizem, foi atingida e maculada pela blasfêmia.

Resposta de Deus
            Parece lógico, conforme estamos acostumados, que Deus atenda aos que oram humildemente e que se recuse a ouvir os rogos e as blasfêmias dos revoltados. Sem dúvida, é essa a verdade e é conforme o ensino das Escrituras e das religiões. Vem-nos imediatamente à memória o cântico de Maria onde ela exclama: “dispersou os orgulhosos (...), os humildes exaltou”, ou a passagem da Carta de São Pedro: “Deus resiste aos soberbos, mas dá sua graça aos humildes” (1Pd 5,5). Deus, sendo Pai, Irmão e Amigo do ser humano, e de todo ser humano, não poderia agir diferentemente. É o que pensamos.
            Porém, diante de Deus aquilo que, para nós é revolta e blasfêmia, pode ser oração e clamor por justiça! Tudo depende de quem procede a revolta ou a blasfêmia. Sabemo-lo bem, todavia poucas vezes nos toca o grito de Jesus na cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mt 27,46; Mc 15,34). Não seria também esta uma blasfêmia, uma vez que Jesus duvidou da presença de Deus naquele momento dramático?! Jesus retomando o Salmo 22 e gritando desesperadamente ao seu Pai estava blasfemando? Qual foi a reação do Pai? Ele se vingou de Jesus e o deixou entregue às mãos dos malfeitores? Quando Jesus, conforme Lc 23,46, diz “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito”, o Pai o rejeitou? Isso merece profunda reflexão de nossa parte. Não podemos ser levianos e julgar as coisas com nossos critérios adquiridos de qualquer jeito. Existem situações nas quais as blasfêmias são súplicas e orações diante de Deus que conhece o profundo do coração humano. O simples fato de alguém gritar a Deus em seu desespero já pode ser expressão de confiança na espera de ser atendido. O Pai não haveria de ouvir os gritos desesperados de seus filhos? Leonardo Boff não ousa afirmar que “quem grita a Deus deposita nele toda a confiança e espera ser atendido” (A Ave-Maria – O Feminino e o Espírito Santo, p. 107). E, compadecendo-se dos pais pobres que não têm como atender os filhos que gritam por alimento que não vem, Leonardo Boff não teme afirmar que “as blasfêmias dos pobres são súplicas para Deus, quando proferidas diante da fome das crianças!” (O Pai-Nosso, p. 89). Essas palavras do teólogo, quando bem interpretadas, são atualizações das palavras de Jesus na cruz. O Pai de Jesus não pode não ouvir as blasfêmias de um pai ou de uma mãe que grita ao ver seu filho passando fome e não poder atender aos choros dele. Como o Pai do céu atendeu a seu Filho Jesus e o ressuscitou, assim também ouve e atende a todo o pobre que lhe suplica, mesmo que a súplica do pobre seja em forma de grito ou de blasfêmia. O grito e a blasfêmia do pobre são ecos da maldade dos ricos; assim como o grito e a blasfêmia de Jesus na cruz foram ecos da maldade dos ricos que o crucificaram. Na verdade, a blasfêmia não é do pobre que a pronuncia, mas é daquele que não reparte os bens, do ganancioso, daquele que é a causa da fome, daquele que mata. Esse, sim, blasfema contra Deus, contra a religião, contra o próximo e contra a natureza.
            Que ninguém cause fome, pobreza ou qualquer injustiça ao seu irmão; ele poderá clamar ao Senhor, o Senhor o atenderá, e o ímpio passará por blasfemo diante de Deus, da religião, do próximo e da natureza sem ter o consolo de Deus que o escuta e o atende.

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