sábado, 1 de março de 2014

Concílio Vaticano II hoje (13)

PACTO DAS CATACUMBAS (PONTO 12)

            No décimo segundo item do Pacto das Catacumbas os bispos assim se expressaram: “Comprometemo-nos a partilhar, na caridade pastoral, nossa vida com nossos irmãos em Cristo, sacerdotes, religiosos e leigos, para que nosso ministério constitua um verdadeiro serviço; assim: - esforçar-nos-emos para ‘revisar nossa vida’ com eles; - suscitaremos colaboradores para serem mais uns animadores segundo o espírito, do que uns chefes segundo o mundo; - procuraremos ser o mais humanamente presentes, acolhedores...; - mostrar-nos-emos abertos a todos, seja qual for a sua religião. (Cf. Mc 8,34s; At 6,1-7; 1 Tm 3,8-10)”. Os textos citados pelos bispos assinantes do pacto são os que seguem: “Chamou, então, a multidão, juntamente com os discípulos, e disse-lhes: ‘Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me’! Pois quem quiser salvar sua vida a perderá; mas quem perder sua vida por causa de mim e do Evangelho, a salvará”; “Naqueles dias, o número dos discípulos tinha aumentado, e os fiéis de língua grega começaram a queixar-se dos fiéis de língua hebraica. Os de língua grega diziam que suas viúvas eram deixadas de lado no atendimento diário. Então os Doze apóstolos reuniram a multidão dos discípulos e disseram: ‘Não está certo que nós abandonemos a pregação da palavra de Deus para servirmos às mesas. Portanto, irmãos, escolhei entre vós sete homens de boa reputação, cheios do Espírito e de sabedoria, para que lhes confiemos essa tarefa. Deste modo, nós poderemos dedicar-nos inteiramente à oração e ao serviço da Palavra’. A proposta agradou a toda a multidão. Escolheram então Estêvão, homem cheio de fé e do Espírito Santo; e também Filipe, Nicanor, Tímon, Pármenas e Nicolau de Antioquia, um prosélito. Eles foram apresentados aos apóstolos, que oraram e impuseram as mãos sobre eles. Entretanto, a palavra de Deus crescia, e o número dos discípulos se multiplicava consideravelmente em Jerusalém. Também um grande grupo de sacerdotes judeus aderiu à fé”; “Os diáconos, igualmente, devem ser pessoas decentes, homens de palavra, não viciados no vinho nem afeitos a lucros torpes. Saibam guardar o mistério da fé graças a uma consciência pura. Será preciso, primeiro, examiná-los; depois, caso não haja nada a censurar-lhes, é que assumirão as funções de diácono”.
Os textos neotestamentários não poderiam ser mais claros. Os pastores do povo de Deus necessitam estar dispostos a servir, e servir sempre, assim como Jesus soube dar a vida pela causa do Reino do Pai. O testemunho dos pastores dava condições para que o número dos discípulos crescesse cada vez mais. O que esse item do Pacto das Catacumbas pretende renovar na Igreja pós-conciliar?

Partilhar a vida
            Os bispos entenderam muito bem que o ministério será verdadeiro serviço se toda a vida deles for partilha de vida; caso contrário, o ministério será, diríamos hoje, atividade profissional. Algo feito em vista do salário e, que se sujeita a horário determinado. Esta nunca pode ser atitude do pastor que serve verdadeiramente como o Bom Pastor. O que caracteriza a partilha da vida é a caridade pastoral. Alguém até pode dar a vida por alguma causa, mas a caridade pastoral vai muito além. Ela quer que ninguém se perca e, que os “perdidos” sejam reencontrados e recuperados – salvos -, custe o que custar. A caridade, por sua vez, não pede nada em troca; ela é gratuita.
            A partilha da vida acontece com os “irmãos em Cristo”. Em outras palavras isso quer dizer que é com todos aqueles pelos quais Cristo derramou o seu sangue. Não resta dúvida, a partilha há de ser sem reservas. Cristo deu a sua vida por cada ser humano, e, espera que os bispos façam a mesma coisa. Contudo, como não poderiam deixar de fazer, tiverem presentes as pessoas concretas de suas dioceses, os sacerdotes, os religiosos e toda a multidão de leigos a eles cofiada. A partilha da vida, no entanto, não pode ser sem estratégias. Por isso a necessidade de revisar sempre de novo com o povo a vida que não pode ficar em propósitos bons, mas confrontada com as carências e anseios das pessoas. Sem colaboradores bem formados e escolhidos para animar os irmãos em Cristo poucos frutos serão colhidos. Mas estes últimos não podem ter espírito mundano que, quando mais alto na hierarquia, tanto mais honrarias quer. A palavra “colaboradores” o expressa bem: não são chefes, mas servidores. O desejo de estar humanamente presentes e ser acolhedores aponta para o compromisso de caminhar juntos. Os bispos têm consciência de não serem melhores do que ninguém, mas que com todo o povo de Deus precisam de conversão contínua, avançar no caminho do bem e, aprender com o povo simples as virtudes que aí se escondem. A abertura às diversas religiões expressa a disposição para o diálogo. A ninguém é permitido fechar as portas, e todos podem enriquecer a experiência religiosa, quando é feita com humildade.
            A proposta de partilhar a vida foi ousada. Como Cristo mostraram-se dispostos a tomar a cruz de cada dia, como os apóstolos procuraram estar cheios do Espírito Santo, e como os diáconos, pessoas cheios de fé.

Por 50 anos na América Latina
            Alguém tenta segurar a Igreja – seus pastores – nas sacristias! E o pior, alguns bispos, padres, religiosos e agentes de pastoral gostaram da proteção da sacristia. Ir para as ruas é muito perigoso! Lá tem muita violência, malícia e todo tipo de maldades: “a Igreja não pode se misturar com essas coisas! Política? nem se fala. Onde é que se viu, agora até a Igreja quer se meter em questões políticas e econômicas!”. Surgiram os padres dos shows, das novenas, das pregações entusiastas etc. Apareceram muitos abastados dispostos a “contribuírem” com obras sociais, com esmolas para os pobres, e outros tantos. Boa anestesia para a consciência! Ainda mais quando os nomes constam nos relatórios das paróquias, entre os contribuintes; quando são lembrados nas intenções das missas ou de outras orações feitas nas comunidades. Tudo isso sempre existiu, existe, e existirá. Na América Latina, nos 50 anos que sucederam ao Concílio Vaticano II, não foi diferente.
            Porém, quem tem olhos para ver, ouvidos para ouvir, e os demais sentidos afinados, mormente os da mente e do coração, sabe muito bem que outra face da Igreja, do episcopado, do clero e do povo de Deus (fiéis leigos), brilhou e continua a brilhar no Brasil e na América Latina nesses 50 anos posteriores ao Pacto das Catacumbas. Ninguém em sã consciência pode negar os imensos avanços da Igreja para junto do povo pobre e oprimido – a grande maioria -, que a Caminhada da Libertação proporcionou com sua insistência em apontar, como teologia, para além de todas as realizações imediatas de prosperidade e sucesso, ao Reino de Deus e de sua justiça. Pequenos grupos se formaram onde a Igreja se fez experiência do Reino de Deus. Bispos, padres, religiosos e leigos, todos juntos, compartilhando as dores e as alegrias, lutando por mais vida, e celebrando, na fé e na esperança, a presença do Senhor Ressuscitado. A inclusão dos descartados nas comunidades de periferia perturbou aos poderosos deste mundo. Entre os poderosos perturbados também estão lobos vestidos com peles de carneiros: são os que ainda insistem em ver os postos hierárquicos como honras conquistadas e defendidos a unhas e dentes.
            Para quem pensa que os propósitos dos bispos das catacumbas foi apenas fogo de palha, que agora as coisas já voltaram para o marasmo de sempre, queremos recordar as sábias palavras do nosso ilustre e influente teólogo da libertação, Pe. Libânio – falecido há pouco – de que se pode imaginar o movimento teológico da libertação como uma imensa estátua de sal diante dos olhos da sociedade. Com o passar dos anos, o medo que essa estátua provocava foi diminuindo, e aos poucos tentaram desmanchá-la, jogando água contra ela. De fato, ela se diluiu. Sua cabeça mal aparece por cima das águas que se espalharam por toda a superfície. Porém, puro engano! O sal da estátua se diluiu, mas as águas o levaram para todas as valetas; seu sabor atingiu os mais recônditos espaços ocupados pelos seres humanos que já não contavam mais para a sociedade. Hoje já não se pode prescindir dessa certeza de que todos lutam por seus direitos e aí daqueles que simplesmente passam por cima dos outros, seja de quem for!
            É bom lembrar que quanto mais os bispos e os chefes de comunidades tiveram a coragem de se tornar animadores, presentes no dia a dia da vida do povo, abertos ao diálogo, tanto mais os pobres, os indefesos e os deserdados da vida tomaram consciência de sua dignidade. Retomaram sua voz para também ter vez. A Igreja produziu muitos mártires nesses anos. Mártires da luta, do serviço humilde e, principalmente da persistência teimosa em sonhar com um mundo melhor, onde todos têm vez e voz. A Igreja estava e está com eles. Melhor ainda, eles são a verdadeira Igreja de Cristo que, como Ele, não se cansa de anunciar e implantar o Reino de Deus, seu Pai.

Puxada de orelhas
            Tudo o que é humano é limitado. Até os propósitos mais santos e sérios. Não há dúvida de que também o compromisso assinado pelos bispos do pacto vai aos poucos esmorecendo. É preciso que alguém os lembre novamente do que se propuseram, e que faça isso com muita convicção, um puxar de orelhas!
            Muito se falou e se escreveu sobre a necessidade de recuperar o espírito renovador do Vaticano II, mas para a surpresa de toda a Igreja, o impacto causado pelo fenômeno Papa Francisco, não é apenas um puxar de orelhas, mas verdadeiro sopro do Espírito, executado com autoridade, que interpela a todos, primeiramente aos bispos e responsáveis pelas igrejas e comunidades de todos os cantos da terra. Em seus discursos, Francisco não mede as palavras para chamar a atenção dos líderes (bispos, padres etc.) para sua real responsabilidade pelo rebanho de Cristo. Nada de honras, mas serviço! Falando aos responsáveis pela escolha dos futuros bispos, Francisco lhes adverte de que devem estar certos de que os nomes por eles apresentados foram antes pronunciados pelo Senhor. Necessitam possuir tal garantia. Por isso, os bispos eleitos precisam ser antes eleitos pelo Espírito Santo, e requeridos pelo Povo Santo de Deus; devem ser pastores, não ‘para si’, mas para a Igreja, para os outros, sobretudo para aqueles que, segundo o mundo, devem ser descartados. Bispos que fiquem em suas dioceses e não andem viajando para participar de ‘encontros e congressos’, pelo mundo todo. Bispos que saibam oferecer a própria vida pela Igreja, não sozinhos, mas junto com ela. Que saibam elevar-se à altura do olhar de Deus, para de lá guiar o povo. A Igreja não precisa de bispos dirigentes, administradores de empresa, e muito menos de alguém que está ao nível das deficiências ou pequenas pretensões das pessoas, mas de alguém que olhe com a amplidão do coração de Deus. Todas as qualidades humanas, intelectuais, culturais são importantes, contudo devem ser uma declinação do testemunho central do Ressuscitado, subordinados a este compromisso prioritário.
            Boa puxada de orelhas! Talvez para alguns seja exagerado, mas é sempre bom aproveitar a oportunidade para se renovar. Ao achar que está tudo bem, as pessoas e as comunidades de acomodam. O verdadeiro discípulo de Jesus de Nazaré não pode nunca estar “tranquilo”, mas sempre atento e ouvindo continuamente as palavras do Divino Mestre: “Vai!”.
            Que bispos, padres, religiosos e leigos, louvando a Deus pelo jubileu de ouro do Concílio Vaticano II, e pela força inovadora derramada sobre todos com a novidade do Papa Francisco, se renovem e deixem o Espírito agir para que Ele renove a face da Terra.
Pe. Mário Fernando Glaab

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