O
PERIGO DE SER “RELIGIOSO”
Existem religiosos e “religiosos”. Não quero falar dos
religiosos, daqueles que pertencem a ordens ou congregações religiosas e que o
são por vocação. Quero, no entanto refletir sobre uma outra concepção de
religioso, que em si não tem nada de extraordinário, mas que, pelo fato mesmo
de ser religioso, está em contínuo risco de se desviar do que lhe é próprio.
Religiões
e religiosos
As religiões têm como finalidade específica religar a
Deus; ou estabelecer uma via entre o Transcendente e o Imanente, entre Deus, o
ser humano e as criaturas. Aqueles que optam por uma religião tornam-se
religiosos, por “utilizarem” este caminho que os une a Deus, com os demais
humanos e com toda a criação. No seguimento religioso os indivíduos se tornam
presença no mundo da realidade que vai além do que é somente do mundo. Em
outras palavras, mostram e realizam concretamente a atuação de Deus no
emaranhado das coisas e acontecimentos da história deste mundo.
As religiões e os religiosos, como se pode ver, são de
extrema necessidade para que a realidade onde se encontram as criaturas possa
ter respostas que vão além do imediato. Dar sentido para questões que não
encontram significado somente nas explicações científicas, técnicas,
econômicas; muito menos na sede do poder, do prazer e do ter. As religiões e os
religiosos convidam e levam para valores que ultrapassam estes falsos valores,
que na verdade, não libertam, mas prendem e escravizam. Tornam a vida e os
relacionamentos humanos insuportáveis. Assim, um mundo sem religião é um mundo
sem significado; mas, o mundo religioso é estabelecido em relações novas e
valores que dão sentido para opções que não são percebidos sem a presença da
religião.
Até aqui não estamos falando desta ou daquela religião
específica, sabendo que no passado e no presente existiram e existem inúmeras
religiões, cada uma com suas qualidades boas e com suas dificuldades e limites;
todas, no entanto, procurando estabelecer o contato entre o divino e o humano.
Pretendemos agora nos referir à nossa religião cristã, mais diretamente à
Igreja, da qual também nós somos membros e que faz de nós religiosos.
Igreja
“em saída” e Igreja “em entrada”
O Papa Francisco insiste, e volta a insistir, numa Igreja
“em saída”. Se ele insiste nessa questão, podemos nos perguntar sobre o
contrário: Igreja “em entrada”, o que é isso? Certamente esta Igreja está por
aí, e está camuflada ao ponto de muitos não a verem. Estejamos atentos.
Mas, o que o Papa entende com Igreja “em saída”? Ele
mesmo explica: uma Igreja que se envolve com todas as realidades humanas; uma
Igreja que, por causa de Jesus Cristo – seu Mestre e Senhor – não tem medo de
se machucar no encontro com os machucados da vida. Uma Igreja que busca levar a
todos a Boa Notícia de que Deus é um Deus misericordioso e libertador. Deus
quer levantar todos, sem discriminar ninguém. E por isso se faz um com todos,
principalmente com os mais esquecidos e necessitados. Igreja “em saída” é a
Igreja que anuncia e realiza a salvação do mundo, pois leva a todos o próprio
Salvador, Jesus Cristo.
A Igreja “em entrada”, por outro lado, deve ser o contrário.
Isto é, uma comunidade que se fecha sobre si mesma. Ela está preocupada em se
autodefender, cuidar-se para não se contaminar com os males que afligem a
humanidade. Mais do que isso, ela se acha boa. Ela possui saúde, pois Cristo, o
Divino Médico é posse sua. Todos os que aderem a ela estarão protegidos,
contanto que se “abriguem” à sua sombra e não se exponham aos ventos frios das
ruas do mundo. Triste constatação: Era assim que Jesus quis a sua Igreja?
Aliás, sabe-se que há uma tentação muito forte entre os
fiéis da Igreja no sentido de buscar refúgio contra os ataques do mundo
infestado pelo mal. È bem mais fácil se fechar num templo e lá, junto com
irmãos seletos, louvar o Senhor, do que estar nas ruas e vielas das cidades ou
dos campos onde estão os caídos à beira dos caminhos, vítimas da violência, dos
vícios, das incompreensões, dos preconceitos e das expulsões, até mesmo das
comunidades de fé. Esta Igreja, porém, se atrofia, fica doente, pois o Espírito
de Cristo impele os discípulos de Jesus a saírem para os confins do mundo. As
portas e janelas fechadas são sinais de medo, de falta de fé no Ressuscitado.
Uma vez que o Ressuscitado derramou seu Espírito sobre os discípulos medrosos,
eles não podem mais ficar fechados; necessitam sair e pregar a todos, sem medo
e sem vergonha. Testemunhar que Ele vive e que quer curar todos os males da
humanidade. Ele o faz pela Igreja, concretamente pelos seus fiéis, discípulos
verdadeiros de Jesus de Nazaré.
Religiosos
perversos
Por incrível que pareça, as religiões podem perverter
seus religiosos. Isto acontece quando as religiões domesticam as consciências
dos fiéis. No nosso caso, o cristão, que deve ser sempre chamado, convocado e
seduzido por Jesus Cristo a sair, como discípulo dele pelo mundo ao encalço dos
pobres e pecadores para “ressuscitá-los”, mas que encontra na Igreja somente
consolo e paz de consciência e se sente protegido, é um típico “religioso em
perigo”. Este, na verdade, está buscando “seu ninho” na Igreja onde pode viver
tranquilo e não ser infectado pelos vírus que estão “lá fora”. A pureza em
excesso se torna psicose maníaca!
Deve-se desconfiar dos religiosos que se julgam melhores
que a grande maioria das pessoas. São tantos os religiosos que por causa de sua
condição e status conquistados,
esquecem ou até desprezam os demais. Gostam de ser lembrados como ministros,
catequistas, diáconos, padres, bispos...; fazem questão dos títulos de destaque
– excelência, reverência, ilustre senhor(a) -, usam vestes distintivas para
serem diferentes e procuram os primeiros lugares. O termo “irmão” perde seu
significado verdadeiro entre eles. Pior, quando na comunidade existem rixas e
ciúmes, um competindo com o outro pelos postos melhores e mais importantes.
Um exemplo típico da perversão dos religiosos são os
símbolos do cristianismo transformados em símbolos de poder e de dominação. A
cruz, que lembra Jesus de Nazaré humilhado até o extremo, abandonado por todos
(até pelo Pai!), condenado pelos líderes religiosos e políticos de seu tempo,
chega ao absurdo de ser desfigurada em objeto de poder e de dignidade, que se
coloca sobre o peito de imperadores, militares, homens ilustres; é colocada em
tribunais, locais públicos e mesmo nas casas. Cruzes de ouro e de pedras
preciosas. Cruzes que são uma zombaria da dor e do fracasso de todos os seres
humanos nos quais Jesus continua sofrendo e fracassando nesse exato momento.
Mas para os religiosos ela é sinal de dignidade e proteção.
Que tal, se soubéssemos ver nas cruzes que “enfeitam”
nossos peitos e nossas salas os irmãos sofredores de hoje? Ou até substituir o
crucifixo da parede por uma foto de crianças assustadoramente magras e
famintas, por refugiados de todos os tipos, por sem-terra e sem-teto, por
homens e mulheres de rua mal cheirosos e maltrapilhos? Talvez afastaria da
tentação da “religião de proteção”, do “perigo de ser religioso”.
Ter religião e ser religioso é preciso; mas bem
entendido, para que o mundo possa ser um pouco melhor. Nunca para que o homem e
a mulher “religiosos” possam se sentir melhores que os outros.
Pe. Mário
Fernando Glaab
www.marioglaab.blogspot.com
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