sexta-feira, 5 de julho de 2019

O Reino de Cristo como horizonte


MALDADE E BONDADE

            Um teólogo atual escreveu: “O mal é inteligente, ativo, voluntário, decidido, perverso e produtor de perversão – é demoníaco e é pessoal, é o maligno ‘e seus anjos’ (Mt 25,41) -, os anjos de carne e osso, mensageiros do maligno que infernizam a vida do mundo” (L. C. Susin); e no mesmo livro (O tempo e a eternidade) o autor escreveu: “Não há melhor representação dos deuses do que as estátuas em sua imutabilidade, bela mas trágica eternidade sem o movimento da vida”. Isto me fez pensar, e resolvi compartilhar o seguinte:

Maldade
            O mal, dizem os filósofos, não existe; ele é apenas a ausência do bem. Pode ser verdade. Mas, a maldade se mostra com muitas caras; e como! Talvez ela não esteja solta por aí, porém em muitas pessoas que deveriam ser boas, há carências; e, em consequência disso tornam-se más. Aí está a maldade. Elas não são o mal, mas a maldade está nelas. Ou ainda, por não serem boas, deixam que a não-bondade as possua.
            Quando o teólogo fala das qualidades do mal (inteligente, ativo, voluntário...), ele está apresentando a dinamicidade das carências. Os vazios de bondade que se preenchem com maldades. Não há nada de estático, de parado. Os espaços vazios serão ocupados. Esta é uma lei da natureza. E isso vale também para as pessoas que deixam espaços em suas vidas sem ocupá-los com coisas boas. Já dizia um formador espiritual: “Quem não se ocupa, o diabo ocupa!”
            A maldade que se instala no coração das pessoas faz muito mal. Mal que afeta, não de forma abstrata, mas diretamente a “vida do mundo”. É a perversidade agindo e infernizando. Contudo, isto por haver anjos maus “de carne e osso” que agem pessoal e diretamente. Quando se diz que “infernizam”, entende-se que dificultam, ou lutam contra a vida do mundo. Isto quer dizer que a maldade impede a verdadeira vida; e que o mal instalado nos humanos é obstáculo e até morte, por impedir a vida.

Bondade
            Bom é aquele que possui o Bem. Sabe-se também que o Bem está acima de toda capacidade humana, ele é infinitamente superior à criatura humana; então pode-se dizer que bom é aquele que é possuído pela Bem. Ou ao menos, é o sujeito no qual existe uma parcela da bondade do Bem.
            Se a maldade é dinâmica, se ela perverte o mundo; muito mais a bondade transforma e renova a vida no mundo. O autor citado, ao falar da imutabilidade dos deuses representados nas estátuas, lembra que eles nada fazem contra os ataques da maldade. São sem movimento. Então, a bondade que vem do Bem no íntimo das pessoas não pode ser estática. Ela é vida, e vida que se renova, que cresce, que se movimenta em direção a uma meta. Existe um horizonte que é a força motriz de toda a bondade. A bondade vem do Bem que é o Deus da vida, não dos deuses sem vida.
            A bondade, como valor positivo, tem muito mais força transformadora que a maldade, uma vez que engloba tudo em si. Se a maldade usa as armas da violência, a bondade usa a vitalidade do amor que não reage ao violento, mas o procura converter. O amor somente busca justiça, no sentido de que a bondade possa atingir a todos, transformando igualmente o maldoso.

O Reino como horizonte
            Sem dúvida, no mundo convivem as duas realidades, a bondade e a maldade; porém elas estão em luta contínua entre si. Não abstratamente, mas no interior das pessoas e entre as pessoas. Mesmo que às vezes se tem a impressão de que a maldade está vencendo, não se deve esmorecer. Alguém já venceu em nome do amor. Este é Jesus Cristo, o Filho de Deus humanado, que foi a vítima de todos os malvados. Ele ressuscitou e está vivo; na força de seu Espírito move os corações de todos os que o aceitam na fé para levar adiante seu projeto de vida e bondade, o Reino de Deus.
            Para nós o Reino ainda está no horizonte, isto é, algo que se aproxima sem se tornar objeto possuído, pois está no além do próprio Deus; mas para o Ressuscitado ele é realidade possuída. Tenhamos este horizonte diante de nós; e, na fé em Jesus Cristo, na força de seu Espírito, lutemos contra qualquer maldade, venha ela de onde vier, na certeza de que um dia a bondade, presença do Bem nos humanos, há de vencer também em nós.
Pe. Mário Fernando Glaab

sábado, 25 de maio de 2019

Pelo Pobre ao Espírito.


ESPÍRITO, COMUNIDADE E POBRE

            Há novo despertar do cristão e dos povos para a presença do Espírito, na Igreja e no mundo, assim como nas atividades diárias da humanidade. Cada vez mais se toma consciência de que a história das pessoas e dos acontecimentos possui uma “alma”, e que esta, mesmo latente, é de grande importância. O cristão, sem esquecer a dimensão trinitária de sua existência, sabe que está na “era do Espírito”. O Espírito, derramado pelo Pai e pelo Filho, está no mundo conduzindo a história para o seu fim, querido por Deus.

Espírito do Ressuscitado
            Existe o risco de se pensar o Espírito separado do Pai e do Filho. Isto deve ser evitado. Sempre se deve falar a partir do Pai que enviou seu Filho Jesus que morreu e ressuscitou. O Pai e o Filho, para completar a obra da salvação, enviam o Espírito Santo. Portanto, o Espírito Santo é sempre o Espírito do Ressuscitado. O mesmo Espírito, doador de vida, que esteve com Jesus desde o início até o fim, e que o ressuscitou dentre os mortos (cf. Rm 8, 11), é o que está e atua também hoje entre nós e no mundo todo.
            O Espírito do Ressuscitado, derramado sobre a nova comunidade, faz com que as mais diversas procedências entendam em sua própria língua a mesma mensagem. A mensagem da igualdade, da fraternidade, do amor. Surge aí, pois, uma nova comunidade, representada pelos mais diversos povos que se reúnem e entendem (cf. At 2,8-12).
            A maravilha do Pentecostes produz o seu fruto na comunidade onde cada um coloca os seus dons ao serviço do Reino. É na comunidade que as coisas acontecem. Então, o Espírito está na comunidade e leva à comunidade. A comunidade se torna o grande sinal eficaz de uma realidade nova. Apesar das limitações de cada uma, na comunidade já está em realização o sonho de Jesus: o Reino de Deus, seu Pai, em andamento.

O Espírito e o pobre
            No Reino de Deus todos têm o seu lugar; todos são chamados a tomar parte. Os últimos serão os primeiros, conforme Jesus ensina. E, para os pobres é anunciada a boa nova: “um ano do agrado do Senhor” (Lc 4,19). Isto é obra do Espírito que está sobre Jesus.
            Quem é o pobre do qual Jesus fala e que é possuído pelo Espírito? Partindo de Jesus que diz “eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância” (Jo 10,10), e de seu projeto de libertar os necessitados, podemos afirmar que o pobre é aquele que menos vida tem. Hoje em nossa realidade, pobre é todo aquele que não consegue viver bem: o doente, o idoso, a criança desamparada, o carente de bens, de justiça, de cidadania, de cultura, de dignidade, todos os excluídos da sociedade, os que vivem nas “periferias sociais” e até religiosas. Existem os que são discriminados por serem diferentes, por racismo, por intolerância; alguns são perseguidos e até torturados. Tudo isso sem falar dos inúmeros desempregados, dos sem-terra, dos sem-teto, dos sem-educação e dos sem-saúde, dos sem-liberdade. A cada dia estamos em contato com o pobre. Perguntamos: o que o Espírito tem a nos dizer sobre tudo isso? Onde está Ele? Em nós? No pobre? Onde podemos experimentá-lo como renovador da face da Terra?

Dinamismo espiritual
            O Espírito é força, é dinamismo. Jesus, na força do Espírito nunca parou e nem desistiu. Ele agiu até o fim. Assim também acontece com quem se deixa encontrar pelo Espírito hoje. Ele o transforma e o faz agir. Não fica alheio ao irmão pobre. Junta-se a ele, com ele, e forma comunidade.
            Todas as iniciativas, sejam elas conscientes ou não, quando promovem o bem das pessoas, da sociedade, do mundo, são manifestações da ação do Espírito. Em toda pequena oferta, na força da união, no pobre que se liberta está o Espírito de Deus com o seu dinamismo. Quanto mais movimentos de libertação começam, tanto mais o Espírito é experimentado. Ele está aí, basta ter os olhos da fé bem abertos para enxergá-lo, ter um pouco de boa vontade para senti-lo, um pouco de esperança para aguardá-lo.
            Toda a coragem que homens e mulheres testemunham quando enfrentam maledicências, perseguições, violências, prisões, torturas, exílios, assaltos e assassinatos, representam a força do Espírito Santo sustentando as comunidades na luta e na esperança.
            O Espírito não foi embora do nosso mundo, mas está aí, agindo, iluminando e conduzindo. É claro que os poderosos desse mundo não o conhecem, mas os que são pobres, humildes e misericordiosos o conhecem e colaboram com Ele. É na comunidade onde vivem e que defendem a vida que encontram o Espírito.
            Vinde Espírito Santo, e renovai a face da Terra.
Pe. Mário Fernando Glaab

terça-feira, 2 de abril de 2019

Celebração e vida.


EUCARISTIA: COMUNGAR COM O POBRE

            Eucaristia é ação de graças. Uma obra de agradecimento. Quem agradece, senão aquele que recebeu algo? Algo que não possuía, algo que o enriqueceu. Aí estão em jogo dois elementos: doação e recepção; alguém que dá e alguém que recebe. Dois pobres. O primeiro é pobre porque não está apegado ao que tem e sabe doar; o segundo, porque acolhe um dom que não possuía e o valoriza. Comunhão de pobres que se faz ação de graças.

Ação de graças
            Só o pobre dá graças. O rico não agradece, pois ele acha que merece tudo o que tem. Não questiona de onde vêm os seus bens. Sua ganância não tem limites, só pensa em aumentar mais suas riquezas. Não se importa se os meios para possui-los são corretos ou não. Dar graças é próprio de quem reconhece sua pobreza e sabe valorizar o que recebe. Acolhe e faz frutificar.
            Não é possível dar graças sem compromisso efetivo. Ao acolher um presente, necessariamente, se assume um compromisso: usá-lo para o bem. Isto é ação de graças. Quando uma criança recebe um brinquedo de presente, ela dá graças quando com alegria vai brincar. Assim ao ser contemplado por uma dádiva, dá-se graças por ela na medida em que ela será usada para a finalidade que lhe é própria.
            Nos evangelhos se diz que Jesus, seguindo a tradição dos ritos judaicos, tomou o pão e o vinho e deu graças. Agradeceu ao Pai por estes dons que representavam a vida de seu povo. Mais ainda, fez com que eles se tornassem seu próprio corpo e sangue – sua existência toda – para com eles dar graças a Deus. Ele, Jesus, é o verdadeiro pobre! Ele recebe a missão salvífica do Pai na força do Espírito, e por isso, no seu corpo e sangue dá graças. Entrega-os para a salvação do mundo. Acolhe e faz frutificar.

Cristãos na esteira de Cristo
            O cristão aprende com Cristo. Cristo deu graças ao Pai com sua Vida, Paixão, Morte e Ressurreição, sacramentadas na Eucaristia. O cristão, cada vez que celebra com Jesus estes mistérios, coloca-se como pobre na mesma dinâmica: recebe e dá. Acolhe o maior presente de amor de Deus – Jesus Salvador -, e alimentado dele, o dá para a salvação do mundo.
            Assim o cristão, na esteira de Cristo, colabora com a salvação do mundo à medida em que, como pobre, acolhe a existência toda de Jesus e a oferece aos demais pobres. Faz frutificar em sua vida os dons recebidos. Isto é Eucaristia, isto é Ação de Graças.
            Quem toma parte da Ação de Graças de Cristo e da Igreja nunca pode afastar seu olhar do pobre; nunca pode negar a ele uma palavra de consolo; nunca pode deixar de lhe estender a mão; nunca pode deixar de lhe dar alguma coisa, por mínima que seja.
            A comunhão na Eucaristia de Cristo implica num aprendizado, numa caminhada contínua. Inicia com uma caridade mínima como atitude assistencialista: dar algo ao pobre, mas que não o tira de sua situação. Outro passo é a o estar com o pobre: partilhar sua vida, seu modo de rezar e de conviver. É uma forma de amor solidário. Mas alguns chegam, por graça especial de Deus, a viver como pobre. É um despojar interior e exterior, viver com o estritamente necessário, alegrando-se como os pobres, sofrendo como os pobres e rezando como eles rezam. Fazem assim a mais alta Ação de Graças, uma vez que dão um sentido todo novo para a existência. Colocam tudo no seu devido lugar, diante de Deus e diante do mundo.
            Quem comunga dessa forma com o pobre, comunga igualmente com Jesus Cristo e, com este está construindo o verdadeiro Reino de Deus sobre a face da Terra.
            Conforme Jesus explicou, quem de fato irá julgar nossas “eucaristias” é o pobre. O pobre será o nosso juiz! Verifiquemos as palavras de Jesus em Mt 25,31-46.
Pe. Mário Fernando Glaab.

sábado, 2 de março de 2019

Conversão Quaresmal.


QUARESMA: TEMPO DE VOLTAR PARA DEUS E PARA O IRMÃO

            Não resta dúvida que nós, seres humanos, estamos sempre em tensão entre o bem e o mal. Enquanto estivermos nesta terra, a luta continua. Na história há luzes e sombras, e ninguém de nós é só portador de bem; acompanha-o sempre a sombra do mal. E por isso, necessitamos momentos fortes que nos facilitem o retorno para o bem: para Deus e para o irmão. A quaresma é um tempo especial para esta conversão.

Opção consciente pelos valores do Reino
            Para os cristãos a conversão consiste em optar pelo Reino de Deus, anunciado e inaugurado por Jesus de Nazaré. Este é o Bem por excelência: Deus com o seu povo. Conversão é uma opção consciente para a bondade, para a luz e para a graça; coisas que apontam para a plenitude. Isso já se realizou plenamente em Jesus. Contudo, em nós o reino do pecado ainda tem os seus poderes nefastos. Precisamos nos colocar do lado de quem o venceu para sermos igualmente vencedores com ele. Estar do lado de Jesus e do Reino de Deus implica em ser parecido com ele, em sair de si e estar diante de Deus que vai ao encontro de todas as suas criaturas, principalmente dos mais pobres e vulneráveis. Optar pelo Reino é optar pelo irmão. A fraternidade é o grande valor do Reino. Não é possível conversão sem fraternidade! “Onde está o teu irmão?”.
            Quanto mais fraternos formos, mais críticas e incompreensões teremos. Basta olhar para o Homem de Nazaré. Ele que só quis o bem, sucumbiu à sanha do mal. Enfrentou dois processos: o religioso e o político. Foi condenado por ambos! Porém, não se furtou dos valores que defendia; e defendeu até o momento derradeiro. Hoje não é muito diferente. Quem pretende ser como Jesus de Nazaré será incompreendido (e perseguido) por muitos, até por autoridades políticas e religiosas. Quaresma é um tempo para se pensar nisso à luz da Palavra de Deus, da própria Palavra feito carne, Jesus, o Cristo. Ele tem muito a nos ensinar.

Aceitar os limites
            As horas, os dias e os anos passam. Sempre de novo ouvimos dizer que é preciso mudança de vida, dizer não ao mal e dizer sim ao bem: se converter. Mais uma quaresma, mais uma Campanha da Fraternidade, como tantas outras. No entanto, tem-se a impressão de que o antirreino ainda surge mais forte. Percebemos que, apesar de tantas iniciativas, ainda não conseguimos nos desvencilhar totalmente das maldades. Somos tão limitados e, diante das tentações, frequentemente cedemos.
            É necessário aceitar os limites de nossa condição humana. Lutar com perseverança, sem nunca desistir. Como fez Jesus? Aos terríveis sofrimentos físicos se somaram os espirituais: a tentação do desespero. O Pai parecia estar longe: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mc 15,34). Porém, ele se entregou ao Mistério. Não entendeu mais nada! O Abba não responde! Onde este Ele agora?! Todavia, se entrega: “Dando um grande grito, Jesus expirou” (Mc 15,37). Mesmo morrendo a pior de todas as mortes, ele continua a confiar em Deus.
            Jesus aceitou todos os limites, o sofrimento e o abandono total, desceu até o inferno do abandono de Deus, seu Pai. Não deixou de confiar. Cabe a nós contemplar este trágico espetáculo, assumir a causa de Jesus, e, confiar até o último instante. Os limites nossos, de nosso próximo, da natureza e dos acontecimentos da história certamente nos desafiarão. Seremos tentados por todos os lados. Mas se continuarmos a caminhada no seguimento do Divino Mestre, com toda certeza, haveremos de ver a vitória da Ressurreição. Mesmo que a vida nos prepare amargas surpresas, se nos mergulhar na escuridão, se não sentirmos mais a palma da mão de Deus, ou até perguntarmos “Deus existe de fato?”, ainda poderemos e devemos confiar, pois são os limites que nos afligem, mas que não são mais fortes que o amor de Deus.

Quaresma com Jesus e com o Irmão
            Então, não faz nenhum sentido se preocupar com isso e com aquilo, se pode fazer ou não fazer certas coisas durante a quaresma; se tudo isso não for em vista do retorno a Deus e ao Irmão.
            No dia a dia ninguém está livre da tormentosa travessia pelo “vale de lágrimas”. Porém, o cristão sempre tem diante dos olhos a vida, a paixão, morte e a ressurreição de Jesus Cristo; e esta lhe dá coragem para avançar rumo aos valores do Reino. A consciência disso se reaviva na quaresma, enriquecida entre nós pela feliz iniciativa da Campanha da Fraternidade.
            Em palavras bem simples, conversão é um voltar para Deus e para o Irmão: pensar com Jesus, sofrer com Jesus, suportar a escuridão com Jesus, sentir o abandono com Jesus, descer até a última solidão da alma com Jesus. Aí perseverar e esperar que alguma luz venha de algum lugar que só Deus conhece. Perseverando nessa travessia conheceremos o destino último de Jesus: a irrupção de um sol que não conhecerá mais ocaso, uma vida nunca mais ameaçada pelo sopro da morte. Saberemos o que significa Ressurreição.
Pe. Mário Fernando Glaab

sábado, 29 de dezembro de 2018

Pela nossa família à Família Divina


SAGRADA FAMÍLIA: MISTÉRIO TRINITÁRIO

            Nada mais misterioso e mais revelador do que a Sagrada Família, a família de Jesus, Maria e José. Tão misterioso que mal podemos pensar ou dizer algo sobre ela: são muito poucas as palavras que os evangelistas usam para falar dela. Porém, por outro lado, por trás do mistério, eles nos apresentam o rosto do maior mistério, o da Santíssima Trindade, que se comunica para toda a humanidade em “linguagem” humana familiar.

Maria, a serva do Senhor
            As coisas que sabemos desta mulher são tão poucas que não é possível reconstituir sua história. São apenas algumas informações vagas. Nada sobre sua família, seu dia-a-dia, seus costumes, seu relacionamento com os vizinhos... Tudo o que sabemos está relacionado à sua missão.
            Os evangelistas se referem a ela como aquela que Deus escolheu para a missão de ser sua mãe. Por trás dessa missão a mostram como a “serva do Senhor”, e assim o próprio Espírito Santo pode vir sobre ela para cobri-la com sua sombra. Ela, dessa forma, torna-se a manifestação (presença) do Espírito que impulsiona toda a humanidade e toda a criação para o mistério de Deus Amor e Salvador. Nela, e por ela para toda a humanidade, o Espírito mora para sempre neste mundo. Ele gera continuamente o Filho Salvador em Maria. Maria, na condição de serva, é a mais perfeita manifestação do mistério do Espírito Santo, o Doador de Vida.
            Num determinado momento da história de Maria tudo passou a girar ao redor dela, pois, na verdade ela é portadora de duas pessoas divinas: do Filho – como seu Filho – e do Espírito, que dentro dela estão dando forma à sua humanidade. Ela é bendita entre todas as mulheres (cf. Lc 1,42), sendo assim, o templo mais sagrado que jamais existiu neste mundo.

Jesus, o Filho de Deus e de Maria
            Jesus é membro da Família de Nazaré. Ele é Filho de Maria e de José; esta é sua família humana, ao ponto de José lhe dar o nome. Mas é o Filho do Pai Eterno.
            Nada mais misterioso, esplendoroso e revelador: Deus, comunicação de seu amor, na companhia de um pai e uma mãe tão humildes e simples como José e Maria. Ele é o Verbo Eterno de Deus, a comunicação de sua Glória Eterna. É na Família de Nazaré que Deus fixa sua morada para sempre com a humanidade de todos os tempos. Ele é o Filho de Deus, o Filho de Maria, membro da Sagrada Família.

José, receptáculo do Pai
            Sabemos pouco da história de Maria, sabemos bem menos da história de José. Praticamente nada. Somente sabemos algo dele em função da Esposa e do Filho. Era homem justo, trabalhador, protetor; que nunca falou, apenas agiu. Desapareceu diante da ação do Filho. No entanto, cumpriu sua missão: estar presente através de sua Esposa e de seu Filho. Ele entendeu sua missão por meio do sonho, que é a linguagem do mistério mais profundo em nós.
            É neste homem que o Pai Eterno, mistério mais profundo de amor para com toda a criação, encontra um receptáculo adequado para estar também na família humana. O Pai é providente e sempre trabalha: foi assim que Jesus o revelou. Proteger e trabalhar é a missão de todo o pai. José tinha uma similaridade com o Pai celeste; tinha tudo para ser o seu receptáculo. Assim o Pai também veio morar entre nós para sempre em José e em todos os pais que, como ele, estão abertos à ação divina, cada um conforme sua missão.
            Na Família de Nazaré, o Pai, o Filho e o Espírito Santo se fazem presentes, e, a partir dela, igualmente em todas as famílias de todos os tempos. Isto, à medida em que elas se dispõem a acolher o Espírito como servos, o Verbo como testemunhas e mensageiros da verdade, e o Pai como trabalhadores e protetores da vida e da natureza criada pela Trindade Santa.

Nossas Famílias
            Tendo a Sagrada Família como modelo, nossas famílias devem se tornar cada vez mais manifestação da presença do Deus Uno e Trino. Elas também precisam mostrar que são santas e sagradas. Diz o Papa Francisco "a grande missão da família é dar lugar a Jesus que vem, acolhê-lo na família, na pessoa dos filhos, do marido, da esposa, dos avós. Jesus está ali. Acolhê-lo ali, para que cresça e espiritualmente naquela família”.
            Quanto mais os membros de nossas famílias tiverem consciência de seu lugar na família, tanto mais as Pessoas Divinas podem se manifestar neles. No serviço, na disposição alegre e amorosa, o Espírito Santo; no trabalho silencioso e providente, o Pai Eterno; e, na doação generosa, no testemunho e no respeito à verdade, o Filho – Verbo de Deus.
            Saibamos respeitar e valorizar nossas famílias, e com certeza, haveremos de nos encontrar com algo mais profundo: o mistério do próprio Deus conosco.
Pe. Mário Fernando Glaab

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Ave Maria - A oração que mais fazemos


ALEGRA-TE, CHEIA DE GRAÇA

            A oração que nós mais dirigimos à Mãe de Deus se inicia com as palavras: “Alegra-te, cheia de graça; o Senhor é convosco”. Esta oração nós repetimos muitas vezes em nosso costume de rezar. Ela está baseada nas palavras do anjo Gabriel quando traz o anúncio a Maria, segundo o evangelista Lucas (Lc 1,28). Sobre Maria, o texto diz que ficou perturbada, pensando no significado daquela saudação. Nós queremos com ela refletir sobre o que podemos entender quando pronunciamos estas palavras.

Alegra-te
            Quando se trata dos preparativos e da vinda de Jesus, os mensageiros sempre falam de alegria. Assim disseram a Zacarias “ficarás alegre e feliz“ (Lc 1,14), e aos pastores “eu vos anuncio uma grande alegria” (Lc 2,10). É importante notar que desde o princípio o Mensageiro deixa claro para Maria que se trata de uma “alegria”. Mais tarde, ela canta o seu hino que mostra a felicidade do seu sim a Deus (Lc 1,46-47). Nós somos convidados a nos alegrar com Maria, agora no Advento, e sempre quando fazemos esta prece. Sempre de novo, ao rezar e ao expressar nossa devoção à Mãe de Jesus, nós nos colocamos diante do Senhor que vem. Ele é o motivo da alegria de Maria, e o há de sê-lo igualmente para nós.

Cheia de graça
            O Anjo não saúda Maria com o seu nome, mas dirige-se a ela usando o termo “Agraciada”, ou cheia de graça. A ninguém é dado este título na Sagrada Escritura, a não ser somente a Maria, “a Serva do Senhor” (Lc 1,38). Só ela merece ser chamada assim. Eis a razão da alegria que somente ela experimenta. Mas de onde vem o “agraciada”, e que sentido tem? Deus te agraciou. Este é o sentido último.
            Também Isabel deixa transparecer este sentido ao dizer que Maria é “Bendita” (Lc 1,42). Deus a abençoou. Pelo Anjo e por Isabel podemos ver que Deus agraciou e abençoou Maria e, a graça e a bênção são a identidade dela. Maria agradece e atribui tudo ao Senhor, mas este agiu de maneira muito particular nela.
Serviço amoroso por e para Deus
            O Novo Testamento fala somente mais uma vez em outra passagem sobre “agraciados”. Na carta aos Efésios encontra-se: “... para o louvor de sua graça gloriosa, com que nos agraciou no seu bem-amado” (Ef 1,6). São João Crisóstomo explica que Deus não nos libertou somente de nossos pecados, porém também nos tornou capazes para o amor. Deus capacitou e ornou nossas vidas para o amor serviçal. Nós podemos conformar nossa vontade com a de Deus.
            O que a carta aos Efésios diz se aplica a todos os que em seu Filho Jesus Cristo Deus escolheu como filhos seus. Todos eles foram, por pura graça, assim eleitos. Podem viver na graça. Maria é, no entanto, simples e diretamente saudada pelo Mensageiro de Deus como “a Cheia de Graça”. Ela toma consciência de que antes de todos os demais, foi ela a assim enriquecida por Deus para a sua vocação que é única também. Ela é sempre a serva do Senhor e isto atrai sobre si o olhar amoroso de Deus. Maria atribui tudo a Deus, seu Salvador.
            Nosso louvor a Deus se presta ao reconhecer as maravilhas realizadas em Maria. A Igreja, em sua longa tradição teológica, nos ensina que Maria é a Imaculada Conceição; aquela que sempre está sem pecado e totalmente à disposição do amor de Deus, por ser a Serva.

O Senhor é convosco
            Essa afirmação não é única de Maria, mas é dita a outros que têm uma missão a desempenhar. Assim a Moisés (Ex 3,12), a Jeremias (Jr 1,8.19), e outros. Mas a saudação do Anjo a Maria é pessoal – diretamente a ela e em vista dela -, para estabelecer uma relação entre Deus e Maria em vista da alegria de seu coração.
            Ao rezar tantas vezes “cheia de graça”, queremos, nós, maravilhados e alegres estar conscientes de estar falando desta relação toda singular entre Deus e sua Serva. Que esta oração e reflexão nos façam um pouco mais servos, graciosos e alegres. Maria, cheia de graça, rogai por nós!
Pe. Mário Fernando Glaab

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Natal Cristão


O NATAL E OS POBRES

            Existem dois natais. Um é o natal que se comemora com festas, presentes, com enfeites e até com abusos de toda sorte; que é fruto do consumismo exagerado. Outro é o Natal cristão que se volta para o Menino que nos foi dado: o mistério da Encarnação do Verbo de Deus na pessoa de Jesus de Nazaré, e que é celebrado na fé, na esperança, e principalmente no amor.

Natal pagão
            O natal criado pelo consumismo é o natal pagão. Não tem nada, ou ao menos, muito pouco, de haver com o Natal cristão. Ele valoriza o prazer, o ter e o consumo exagerado. Por isso, não tem escrúpulos em descartar tudo o que impede de alcançar estas coisas. Quem não pode competir, é excluído. Os pobres e os sofredores são “apagados” das imagens desse natal, pois as luzes o fazem brilhar como se fosse de um outro mundo, um mundo de fantasia.
            Este mundo que celebra o seu natal é tão perverso que, para não estragar o seu esplendor, incentiva as pessoas a se desculparem – desencargo de consciência -, fazendo alguma obra de caridade em prol dos miseráveis. Se o pobre tiver uma cesta básica no natal ele não estraga o brilho da rica ceia dos abastados pagãos. Durante o resto do ano não lhes interessa saber se ele tem algo para matar a sua fome; o importante é que ele não perturbe a festa do natal do consumo e da festa. Eles precisam comemorar.
            A figura que mais caracteriza este natal pagão é o Papai Noel com seu saco enorme, sortido de ricos presentes, trazendo alegria para as crianças e para os adultos. Jesus, quando aparece, não é o pobre que nasceu em Belém, mas uma criança envolta em luzes, em um romantismo que nem de longe lembra o acontecimento do nascimento entre os animais por não haver lugar na hospedaria.

Natal Cristão
            O Natal que os cristãos comemoram é bem outra coisa. Ele traz para a nossa realidade e nosso tempo o mistério do Deus Encarnado na pessoa de Jesus de Nazaré. A história daquele casal que não é acolhido em Belém e que deita o recém-nascido em uma manjedoura é celebrada na fé, na esperança e, principalmente no amor-gratidão. Gratidão a Deus, porém traduzido no compromisso para com todos os não-acolhidos de hoje. Natal Cristão sem compromisso não existe. Ele até faz festa, dá presentes e enfeita a casa; mas não fica nisso. Ele transforma interior e externamente as pessoas. Isto porque o Natal de Jesus não fica no passado, mas é hoje. É hoje que no cristão Deus se volta para os desvalidos da história dando-lhes vida; e, esta vida passa pelos cristãos. Os cristãos são hoje os feitores do Natal.
            Para o cristão o Natal de Jesus é muito mais do que uma recordação do que aconteceu há dois mil anos lá em Belém. É a comemoração do mistério da Encarnação de Deus na história e na geografia da humanidade. Isto somente é possível para quem tem fé, pois ultrapassa longe a lógica dos sábios e dos poderosos deste mundo. O Natal aponta para a manifestação mundial da bondade de Deus. Quem sabe ler além das imagens do presépio pode contemplar o rosto de um Deus que se mostra bondoso com o mundo todo. Se naquele Menino está Deus (Ele é Deus), então o mundo é amado por Ele, pois Ele está aí, no mundo da maneira mais humilde possível. Ninguém é afastado dele. Mas, mais ainda, este que nasceu no Natal, aceitou ser rejeitado, condenado e crucificado! O cristão, já no Natal, entrevê a morte por amor deste que nos foi dado. Na entrega total de Jesus, Deus abrange tudo, e manifesta assim, a sua Verdade, a sua Beleza e a sua Majestade. O amor de Deus é verdadeiro (o Natal não é teatro), é belo (é coerente e sincero), e é serviço para todos.

Jesus e os pobres
            Não é possível celebrar o Natal sem levar em conta os pobres. Alguém diz, todos somos pobres! É verdade, mas existem os que são pobres de modo diferente, do jeito de Jesus.
            Se Deus em Jesus se fez pobre e viveu entre os pobres de todos os tipos, como podemos nós não falar dos pobres e dos excluídos ao falar do Natal? Mas, afinal, quem são os pobres? Alguém que muito refletiu sua fé em Jesus de Nazaré e conviveu sempre com os pobres assim explica: “Pobres são aqueles para os quais a vida é uma carga pesada, pois não podem viver com um mínimo de dignidade” (Pagola), justamente para os quais veio o Deus Encarnado. Resumindo, os pobres são os que morrem antes do fim da vida! Portanto, é impossível não levar em conta tantos irmãos que são pobres ao comemorar o Natal Cristão.
            Até pode ser possível falar de Cristo, de um Cristo desencarnado, glorioso que reina na nos altos céus, sem se referir aos pobres, mas tratar de seu nascimento, sua vida e morte na história de um povo sem levar em conta estes últimos, simplesmente é inaceitável. Falar de Cristo, o Senhor lá do céu, aquele que cuida sempre de mim e resolve todos os meus problemas, é fácil; mas falar com seriedade do Homem-Deus, Jesus de Nazaré é, no mínimo, comprometedor. Jesus certamente resolverá minhas situações mais complicadas, mas, à medida em que me faço seu seguidor, ele me faz sair de mim mesmo e ir ao encontro do outro, do necessitado. Isto me liberta; isto me renova e me realiza como ser humano. Não é a fuga do problema que resolve, mas o enfrentá-lo. É a cruz abraçada e carregada que leva à ressurreição. Jesus de Nazaré foi crucificado não por ter feito mal a alguém, mas pelo contrário, por ter feito o bem àqueles que os ricos, os poderosos e os religiosos da época julgavam culpados de sua triste sorte.
            Se quisermos colaborar para que o mundo seja um pouco mais humano deveremos forçosamente deixar que o Natal Cristão seja um encontro com Jesus, o Deus Pobre, e, a partir dele descobrir a presença salvadora do amor de Deus lá onde estão os últimos de todos. Sem Jesus, poderemos continuar falando de Cristo e festejando o natal pagão, mas nunca introduziremos no mundo o potencial humanizador de Jesus de Nazaré, que é o Deus Conosco, o Salvador do mundo.
            Sejamos cristãos de verdade: testemunhemos que o Natal é cada dia e em cada lugar, mas especialmente lá onde as pessoas são mais odiadas, excluídas, perseguidas e mortas. Lá está o Filho de Deus Encarnado, Crucificado e Ressuscitado; lá deve estar também o verdadeiro cristão.
Pe. Mário Fernando Glaab.