BASTANTE
POBRES MUITO POBRES E POUCOS RICOS MUITO RICOS
Existe uma questão que não nos deixa tranquilos: quantos
pobres são necessários para formar um rico? Muito estranho, talvez nunca tenhamos
levado muito a sério esta pergunta. À primeira vista parece que é questão de
soma: um mais um, mais um... Quantos pobres somados resultam em um rico? Mas
talvez não seja assim. Então, olhando de outro ângulo dá para esclarecer melhor.
Reformulemos assim: quantos pobres são necessários para manter um rico? Aí a
coisa fica diferente. Somente assim fica claro que não é a soma dos pobres que
resulta em ricos, mas que estes são indispensáveis para aqueles. Pois, quanto
mais pobres juntos – somados -, tanto mais miseráveis aparecem! Os ricos ficam
longe de numerosos pobres.
Já se pode afirmar com toda certeza que há
proporcionalidade inversa entre ricos e pobres, isto é, numerosos muito pobres
para poucos muito ricos X mais ricos moderados para mais pobres remediados.
Talvez o raciocínio não seja tão claro, mas veremos:
A tradição cristã, baseada na Escritura, sempre teve em
alta consideração o trabalho aos pobres, porém o trabalho com os pobres não gozava
de tanta preocupação. Quando isso acontece, cai-se facilmente no vício de
manter a situação: os poucos muito ricos cevando a multidão bem pobre, para que
esta os sustente. É a concretização do que Jesus viu quando estava observando a
multidão que colocava dinheiro no cofre das ofertas, e comentou o fato da pobre
viúva que deu mais do que os ricos, apesar da quantia ser ínfima (cf. Mc
12,41-44). Os ricos deram do que lhes sobrava, a viúva deu tudo o que tinha.
Isto era para o cofre do Templo, mas no dia-a-dia da sociedade, os ricos deixam
algumas migalhas aos miseráveis para que permaneçam miseráveis, e que assim
possam deles absorver (roubar) tudo. O pobre miserável dá tudo o que possui ao
rico, principalmente a sua dignidade, sem nem mesmo sabê-lo. Sustenta e apóia
seu próprio explorador. Agradece por qualquer migalha que cai da mesa do rico,
e, como não tem com que pagar, faz-lhe elogios; e o voto de confiança lhe está
garantido. Triste realidade!
Jesus, no Evangelho de Lucas tem palavras duras para com
os ricos: “Ai de vós, ricos, porque já tendes vossa consolação! Ai de vós que
agora estais fartos, porque passareis fome! Ai de vós que agora estais rindo,
porque ficareis de luto e chorareis! Ai de vós quando todos falarem bem de vós,
pois era assim que seus antepassados tratavam os falsos profetas!” (Lc 6,24-26).
São Tiago não fica atrás. Ele faz uma pergunta inquietante que deveria deixar
todos com as orelhas em pé: “Acaso não são os ricos que vos oprimem e vos
arrastam aos tribunais?” (Tg 2,6). E continua: “Olhai (ricos): o salário dos
trabalhadores que ceifaram os vossos campos, e que vós deixastes de pagar, está
gritando; o clamor dos trabalhadores chegou aos ouvidos do Senhor
todo-poderoso” (Tg 5,4).
Se mesmo assim ainda existem ricos que se enquadram nos
textos citados (poder-se-ia citar inúmeros outros), precisa-se admitir que o
“deus deles é diferente” que o Deus de Jesus de Nazaré. Deve ser o “deus
dinheiro”, que não está entre os pobres, mas está onde dois ou mais ricos estão
reunidos em seu nome. Este deus justifica toda a ação gananciosa para aumentar
cada vez mais os bens, mesmo que isso sacrifique o pobre, sua vítima. Os
mandamentos deste deus são outros. Somente os ricos os conhecem.
Ricos
abençoados!
Há quem pensa assim: os ricos são ricos porque seu
esforço foi abençoado por Deus. É a teologia da prosperidade. Quanto mais bens
alguém tem, tanto mais abençoado é! Existe, no entanto, jeito de conformar este
raciocínio com a fé cristã?
Na verdade, isto é impossível. O Deus da Bíblia é o “Deus
dos pobres”, e negar isto seria desfigurar totalmente sua identidade. Qualquer
religião que conceba Deus como defensor dos ricos, de seus privilégios e de
suas riquezas não merece ser respeitada como religião, mas, por força de sua
concepção, é superstição ou idolatria.
Jesus de Nazaré fala da dificuldade, ou melhor, da
impossibilidade, de o rico se salvar (cf. Mt 19,23-24), e chama felizes os
pobres porque deles é o Reino de Deus (cf. Lc 6,20). Sem dúvida, a
impossibilidade da salvação do rico não está por ter cometido algum pecado
grave, mas por prestar culto a um deus falso – deus dinheiro -, é um idólatra.
E enquanto idólatra quem o pode salvar? O dinheiro?
Como
fica então a questão da bênção? É a felicidade dos pobres em ter o Reino de
Deus. Deus está onde está o pobre, o sofredor, o injustiçado, o explorado, o
excluído e o pecador. Esta é a verdadeira bênção. Não é a pobreza em si, mas
Deus que vem ao encontro do pobre. Ou melhor, Deus que pode ser acolhido pelo
pobre, uma vez que o pobre não adora o falso deus dos ricos. O pobre, como a
viúva do Evangelho, não está preso a nada. A sua verdadeira riqueza é a vida
dele mesmo e a vida dos demais pobres. São Lourenço, ao ser perguntado sobre as
riquezas da Igreja, respondeu que a riqueza que a Igreja tem são os pobres. Estes
somados, ou acumulados, nunca formam um único rico, pelo contrário, muitos
pobres fortificam-se mutuamente na confiança em Deus, protetor dos pobres.
Quando um pobre se une a outro pobre espera-se
colaboração mútua; todavia, quando um rico procura outro rico, geralmente
existem intenções espúrias que destroem e matam os mais fracos. Nos relacionamentos
entre os pobres existe ajuda desinteressada, mas nos relacionamentos entre os
ricos, mesmo que um apóie o outro, as intenções não são boas.
Nem
riqueza nem pobreza
Muito sábias as palavras do Livro dos Provérbios: “Não me
dês pobreza nem riqueza, mas o pão de cada dia. Porque, se estou saciado, eu
poderia esquecer-me de ti dizendo: e quem é este Deus? E, se estou passando
necessidade, poderia roubar ou maldizer o Nome de meu Deus” (Pr 30,8-9). O
ideal pensado por Deus é que todos os seus filhos e filhas tenham o suficiente
para viverem dignamente. Deus não colocou os bens nesta terra para que uns se
apossassem deles em detrimento dos outros, mas para que fossem bem
administrados e compartilhados entre todos. Porém, enquanto alguns poucos têm
demais, outros muitos têm de menos.
Na visão da fé cristã, levam vantagem os pobres – os
muitos que têm de menos – não porque não possuem, mas porque Deus ouve seus
lamentos e vem ao seu encontro para socorrê-los. Os ricos – poucos que têm
demais – são entregues à sua própria sorte porque o deus falso não os pode
salvar, pois ele não é o Deus da Vida. Já os antigos Padres da Igreja
costumavam dividir a humanidade em infra-humanos e inumanos: os infra-humanos
são os pobres, vítimas dos inumanos; estes, por sua vez – os ricos -, são
vítimas de sua própria riqueza. Deus vem em socorro dos infra-humanos, mas não
pode socorrer os inumanos “porque onde estiver o teu tesouro, aí estará o teu
coração” (Mt 6,21).
Tenhamos coragem para renunciar ao supérfluo e não deixar
que o nosso coração se prenda aos bens desta terra para não adorarmos o deus
falso do dinheiro; e como pobres entre pobres, ajudemo-nos uns aos outros a ter
vida mais justa, digna e fraterna. Deus com certeza estará conosco,
abençoando-nos e dando-nos vida em abundância.
Pe. Mário
Fernando Glaab
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