sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Carência de Profetas

CARÊNCIA DE PROFETAS NA IGREJA E NA SOCIEDADE
Pe. Mário Fernando Glaab
A Palavra não morreu, mas se fez carne e veio morar entre nós.
Não adianta sonhar com um mundo justo e fraterno, pois o mundo não tem mais jeito: ele está perdido! Coisas assim se ouvem por aí. E não faltam os que preveem desgraças, e o fim de tudo. Castigos e mais castigos de Deus pela desobediência das pessoas às suas leis. O interessante é que são sempre os outros que mereceram, com sua conduta errada, a intervenção de Deus que não pode mais tolerar os muitos pecados. Por outro lado, os bons, aqueles que assim se consideram, não têm o mínimo escrúpulo em repetir orações que exaltam a humildade e desaprovam o orgulho. Cantam maravilhosamente o Magnificat, apesar de que esse canto não inspira nenhuma ação concreta para si. Esse jeito de se comportar não perturba ninguém. Não tem consequências, nem para o mal nem para o bem. Enquanto tudo continua como está, nem um nem outro muda a conduta. Os maus continuam maus e os bons continuam bons.
Até a poucos anos atrás a Igreja da América Latina contava com forte vigor profético. A situação de pobreza e opressão de tantos latino-americanos despertou muitos profetas que não aceitaram passivamente a situação. Impulsionados pelo Vaticano II deixaram-se inspirar pela Palavra de Deus e a confrontaram com a situação dos povos oprimidos sem vez e sem voz. O Espírito deu-lhes força e coragem para denunciar a injustiça e anunciar igualdade e fraternidade entre todos. Esse período de nossa história latino-americana contou com grandes homens e mulheres que, sem temer perseguições, fizeram que a Palavra tomasse corpo. Não se limitaram a lamentar os erros do “mundo”, mas se deixaram envolver por eles, para que o Evangelho de Jesus Cristo, por eles e com eles, pudesse transformar situações concretas. O discurso dessas mulheres e desses homens não anunciava o fim do mundo, nem o paraíso terrestre. Não condenava ninguém ao inferno e nem tampouco se autoproclamava santo. Essas pessoas ouviam, viviam e anunciavam com testemunho vivo a Palavra que se fazia carne. Esse era um período fértil de profetas verdadeiros, dentro de um contexto onde também não faltavam os falsos profetas.
Já nos tempos bíblicos em momentos de crise surgem profetas, tanto verdadeiros como falsos. Cabia às pessoas distinguir entre uns e outros. Na América Latina não foi diferente. Surgiram profetas para todos os gostos. Os verdadeiros não estavam ao gosto dos poderosos e dos ricos. O critério para saber quem era verdadeiro profeta e quem era o falso profeta consistia em observar a conduta dele e ouvir a mensagem de cada um. Os profetas verdadeiros, conforme a concepção bíblica, referem-se sempre aos pobres, vítimas da maldade dos poderosos, e à convivência entre a Igreja e os ricos. Desmascaram as obras más dos opressores e exploradores, anunciam às vítimas esperança vinda de Deus, à medida que eles se unirem e lutarem contra toda forma de injustiça. Eles, os profetas, não estão fora da situação, do contexto dos pobres. Também eles são vítimas da mesma acusação que a eles fizeram em todos os tempos: o profeta que mostra os pecados dos poderosos e lhes atribui a responsabilidade por desgraças, tanto dos espoliados da sociedade, das intrigas e guerras, quanto das intempéries da natureza, é acusado de provocá-los e castigado por causa deles. Nos tempos bíblicos os profetas denunciavam os descalabros dos líderes políticos e religiosos; na América Latina das décadas passadas fizeram a mesma coisa. Em situações que clamavam por justiça aos quatro ventos, denunciavam os desvios, as insuficiências, a covardia, ou o silêncio da Igreja e dos governos e apelavam para a conversão ao Evangelho e ao direito de todos os seres humanos à vida.
Nos tempos bíblicos e nos anos de abundante profetismo latino-americano os profetas partiam da realidade que os interpelava, desigualdade entre ricos e pobres, ricos explorando os pobres, os pobres que não têm condições para defender seus direitos, e, à luz de sua fé no Deus da vida – ouvindo a sua Palavra – denunciavam as injustiças e anunciavam novos tempos nos quais Deus faria justiça, e o seu Reino haveria de se instaurar e se estabelecer na fraternidade e na paz. Com o passar do tempo, parece que, as coisas mudaram. Não mudou a situação de milhares de pobres que não conseguiram sair da miséria, mas que, ao invés de ter acesso à vida plena, foram encerrados na condição de “sobrantes”. Como não têm condições para consumir, a sociedade consumista e excludente os dispensou. Mudou, no entanto, a consciência profética. Já não se ouve mais o grito das vozes no deserto “preparai os caminhos do Senhor”! A não ser alguma voz solitária. Geralmente malvista. Os grandes profetas: bispos, padres, religiosos, teólogos, homens e mulheres, leigos e leigas em geral, desapareceram quase por completo.  Por que, será? Será que a Palavra morreu? Não interpela mais? Mas a Palavra não pode morrer, pois ela se estabeleceu para sempre entre os humanos. Afinal, nós não professamos que Jesus morreu e ressuscitou?! Ele está vivo!?
Diz-se que o grande bispo e profeta Dom Hélder Câmara pouco antes de terminar sua caminhada nessa terra pediu para um teólogo, amigo seu, que não deixasse a profecia morrer! A profecia é que dá voz à Palavra. A Palavra transforma o mundo. Os profetas a levam ao mundo. Para que a Igreja e a sociedade hodierna redescubram a profecia, talvez seja necessária uma conversão profunda. A tentação do consumismo, do dinheiro, do prazer e do poder fizeram muitos estragos nelas. Não foram poucos os que acharam mais cômodo se afastar dos pobres para estar mais perto dos ricos. Os ricos atraem mais, pois podem pagar pela palavra (note-se que com letra minúscula) a eles dirigida, podem recompensar pelas bênçãos a eles dadas. Os pobres são todos vagabundos e violentos: não têm jeito, pois não aproveitam as oportunidades! – é o que se pensas. Será que a profecia mudou em nossos dias, não fala mais, como sempre o fez, para os últimos dos seres humanos? O que acontece com a profecia hoje? Não há mais injustiça? Não há mais opressão dos pobres? A Igreja atual é a Igreja dos pobres? Não será esse um sinal de que também a Igreja, a começar com muitos de seus líderes, está contaminada pela ideologia e pelo sistema dominante que não se atreve a falar, ou nem se dá conta de que poderia falar? A Igreja teria sido convencida de que a Palavra morreu, não adianta falar, porque o sistema é mais forte do que nunca? É de pensar!
Os pobres sobrantes de nossa sociedade estão aí. A Palavra também. Sem dúvida, há muitos homens e mulheres, líderes religiosos e teólogos com boa vontade. Um toque, um apelo mais convincente, um envolver-se com as dores, as alegrias e os anseios do povo podem despertar novos profetas. Há muitas pessoas que rezam o Magnificat e outras tantas orações proféticas e que, se estiverem atentas e tiverem coragem para se comprometer, poderão se dispor a testemunhar concretamente sua fé. Esperamos que a fé desça dos pedestais e dos altares para as ruas, para as periferias e para o meio do povo sofredor e injustiçado. Jesus de Nazaré não nasceu nem morreu no templo, nasceu em uma manjedoura e morreu em uma cruz, junto aos pobres e sobrantes da sociedade de seu tempo. Sejamos profetas dele hoje lá onde estão os nossos pobres e os nossos sobrantes falando a todo, sem distinção. Somente a Palavra pode iluminar e converter as pessoas, mas ela precisa da voz do profeta para chegar aos ouvidos e corações dos homens e mulheres de hoje e de sempre.
(Como referência bibliográfica, para interessados no tema, sugiro o livro de José Comblin, A Profecia na Igreja, São Paulo, Paulus).

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