O “SUL” DA VIDA E MISSÃO DA IGREJA
Pe. Mário Fernando Glaab
Parece um pouco estranho falar do “sul” da vida e da missão da Igreja e não do “norte”, como normalmente se diz. Mas é justamente por ser estranho que a expressão é forte. O “norte” da vida lembra a direção que se julga a correta, lá onde é preciso chegar. Com certeza vem de longa data da utilização da bússola que aponta para o Norte. No entanto, esconde-se na expressão ou na palavra uma mentalidade que valoriza o que está no Norte, em detrimento do que está no Sul. É outra maneira de expressar a concepção de o Norte estar no alto, no lugar da cabeça, e que o Sul em baixo, no lugar dos pés. Aliás, os mapas sempre são assim, mesmo que nem sequer contêm regiões que se situam no hemisfério do norte. Ao dizer “sul” pretende-se, mesmo que isso não seja bem aceito, mostrar que existe outra realidade que também pode orientar, e que tem sua importância – quem sabe, até maior do que a do “norte”.
A nossa época supervaloriza o sucesso. Ter sucesso é ser alguém realizado, ter muito dinheiro, saúde e beleza que atrai a atenção das pessoas, das famílias e da sociedade. Quem dita normas para saber o que é sucesso é a cultura que vem do Norte, especialmente dos Estados Unidos, mas também da Europa. Os “sucessos” são compreendidos e gozados por quem conhece o Inglês. Quem não entende dessas coisas está fadado ao insucesso! É do Norte que vêm as músicas, os ritmos, as notícias, as comidas (que geralmente fazem muito mal à saúde), as modas, as ideias... Quem não entende as coisas do Norte, não fala em inglês, é automaticamente excluído.
Na missão da Igreja não é muito diferente. Sem dúvida, na América Latina houve iniciativas importantes, e, ainda temos manifestações de vida própria; também na África e em regiões do Sul pelo mundo a fora a vida teima resistir. Mas, levando em conta o que prevalece, constata-se forte tendência de ceder aos convites do “Norte”. Impõe-se cada vez mais a mentalidade conservadora, não tanto da América do Norte, mas da Europa. Os movimentos ultraconservadores, os bispos ansiosos por zelar pela liturgia e por costumes que já não dizem mais nada para a nossa realidade, as inúmeras devoções piedosas, os sacerdotes midiáticos e tantos mais, são exemplos claros do que afirmamos. A doutrina ensinada na catequese, em homilias, em palestras e em encontros, não deixa de ser a doutrina verdadeira; mas ela, da maneira como é dita e interpretada, fica à mesma distância que a Europa da América Latina. O grande moralista Bernhard Häring escrevia, já no ano de 1993, pouco antes de sua morte, “não se pode nem se deve simplesmente continuar levando adiante uma formulação doutrinal infeliz, apesar de opiniões históricas contrárias e de novos conhecimentos, apelando para interpretações artificiais que ninguém entende” (É possível mudar, Ed. Santuário, p. 15). O que, então, seria o “sul” da vida e da missão da Igreja?
O sul da vida
Se o norte da vida é o sucesso, o bem estar, a beleza e tudo o que vem do Norte, o sul só pode ser o inverso. Santo Irineu de Lião, já no segundo século do cristianismo, em luta contra o movimento gnóstico (movimento que valorizava o espiritual em detrimento da matéria), dizia que “a glória de Deus é a vida do homem, e a vida do homem é a glória de Deus”. Atualizando o ensinamento de Irineu, Dom Romero (chamado de São Romero da América por Francisco de Aquino Júnior) não duvida em dizer que “a glória de Deus é o pobre que vive”. A explicação mais correta para o “sul” da vida está aí: o pobre que vive.
Apesar de não existir no dicionário, pode-se dizer que é necessário “sular” a vida com valores que lhe são próprios. O Deus da vida cria para que o ser humano tenha vida, e vida em plenitude. “Sular” pode então significar orientar a vida em direção dos que não têm no que se apoiar, dos que não têm sucesso, não têm riquezas, não têm saúde nem beleza. Os do Sul, a maioria de nossa população, são os que dão outro significado para a existência. Sendo os crucificados da história, apontam para valores que transcendem as realizações imediatas, para o que de fato a vida é: dom e manifestação do infinito amor-criador de Deus. “Sular” a vida pelos valores indicados pelos crucificados leva a dizer “não” para o transitório, para o supérfluo, para o enganoso e dizer “sim” para o permanente, para o necessário e para o verdadeiro. É envolver-se com a vida de quem quer que seja, a começar pelo último, o caído à beira do caminho e que não tem a mínima esperança de sair do lugar em que está. Isto é possível à medida que descobrirmos, ao estar no “Sul”, que Deus Criador quer a vida plena também para os que estão nesta “parte do Mundo”. A. Queiruga, grande teólogo que busca repensar a teologia para que fale também ao homem de hoje, afirma: “Deus está sempre me amando, assim como ama o ferido à beira do caminho, e está fazendo em prol de ambos tudo quanto depende de sua ação sustentadora e dinamizadora; porém, no momento em que eu, como o bom samaritano, acolho na minha liberdade o seu convite através de meu ser, transformo-o em ação histórica nova, que muda a mim e muda o Mundo. E, pelo contrário, se, como o sacerdote e o escriba da parábola, não acolho esse chamado, a ação de Deus está presente, porém a minha passividade faz com que não aconteça nada” (Apostila: Sacramentos Hoje: Significado e Vivência, p. 16). Aí está, portanto, a responsabilidade de cada um em ajudar a valorizar o que Deus valoriza. Com toda certeza não são os valores que o “Norte” tanto apregoa. Vida em plenitude é vida compartilhada. E, compartilhar a vida só é possível com os que têm espaço vazio em seu ser onde podem acolher a mesma. Aqueles que estão cheios de riquezas e de sucesso não possuem espaço para acolher os valores de vida que o “Sul” oferece.
O sul da missão da Igreja
A missão da Igreja, iluminada pelo Espírito de Cristo, que também está no Sul, há de levar em conta a imensa multidão de excluídos e sobrantes que clamam por vida. Muito mais que anunciar-lhes santas doutrinas logicamente formuladas pelos doutores do Norte (Europa, principalmente), ela precisa ser presença materna e fraterna que aponta para os valores do Reino de Deus. À medida que crescem os movimentos piedosos com mentalidades conservadoras e fundamentalistas, a Igreja, “sulada” pelo Espírito, necessita compadecer-se com as massas sofridas que não se “aproveitam” desses movimentos. As tantas conversões de piedosos que a mídia apresenta como o ideal (muitas vezes baseados em milagres), não passam, na maioria das vezes, de práticas alienantes; pois favorecem alguns “experimentados” só individualmente. Os tais privilegiados fecham-se no seu isolamento e não se envolvem com os problemas que continuam a crucificar os irmãos. Comblin, teólogo do “Sul”, falecido há pouco tempo, escrevia: “Sem consciência dos pobres, o culto ou a oração ficam sem conteúdo, como puras formas exteriores sem contato real com Deus” (A profecia na Igreja, Paulus, p. 248), poderíamos completar: a Igreja na América Latina sem a devida consciência das multidões de crucificados e sobrantes, não pode ser a verdadeira Igreja de Jesus Cristo no Sul do Mundo, pois sua missão e ação ficam sem conteúdo, como puras formas exteriores sem contato real com o Reino de Deus.
Conclusão
Podemos concluir, sem medo de errar, afirmando que se a “glória de Deus é a vida do homem”, no Sul a glória de Deus é a vida dos crucificados. E, se a missão da Igreja é anunciar a Cristo e instaurar o seu Reino no Mundo, aqui no Sul a missão da Igreja é tornar presente esse Cristo e o seu Reino junto aos sobrantes da história. Cada cristão e a Igreja como comunidade têm a incumbência de glorificar a Deus concretamente, não “só para louvar o Senhor”, mas com obras de transformação. Tornar o Reino de Cristo presente não com lindas teorias e orações desencarnadas, mas com atos que defendam e promovam a vida dos povos sofridos. Sucesso e graça, quando não são para todos, são posses indevidas. Aliás, são roubadas.
Referências Bibliográficas
HÄRING, Bernhard, É Possível Mudar. Em defesa de uma nova forma de relacionamento na Igreja, Aparecida, Santuário, 1999;
COMBLIN, José, A profecia na Igreja, São Paulo, Paulus, 2009;
QUEIRUGA, A. Torres, Os Sacramentos Hoxe: Significado e Vivencia, in. Encrucillada, 26/127 (2002).
Nenhum comentário:
Postar um comentário